O boletim PSI conversou com Marcos Muniz de Souza para ampliar a discussão sobre a questão da redução de danos como estratégia de trabalho com usuários de álcool e outras drogas. Na entrevista, Marcos comentou que não acredita que o projeto de redução de danos construído nos últimos trinta anos seja extinto facilmente, na medida em que vem trazendo benefícios importantes para a sociedade e mesmo para o Estado. Também abordou temas como a abstinência, a atenção psicossocial e projetos singulares de tratamento como estratégias. Para ele, implicar o sujeito no tratamento tem se mostrado mais eficiente do que a proibição.

Marcos Muniz de Souza possui um longo percurso de trabalho na saúde mental no Brasil. É psicólogo, mestrando em Psicologia Social pela PUC-SP e membro da Rede de Pesquisa sobre Drogas, composta por pesquisadores da PUC-SP e IP-USP. Atualmente coordena uma Unidade de Acolhimento de Adultos (UAA), que pertence à Rede de Atenção Psicossocial em Álcool e Outras Drogas, na cidade de São Paulo.

 

P.S.I: As unidades de acolhimento de adultos fazem parte da política de redução de danos sociais do ministério da saúde? Como funciona esse acolhimento e o tratamento oferecido aos usuários do serviço?

Marcos Muniz de Souza: Na realidade, as Unidades de Acolhimento [UAs] fazem parte da Política de Atenção em Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, enquanto componente da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). São caracterizadas como Serviços de Atenção Residencial Transitória, pois, de acordo com a portaria que rege o funcionamento das UAs [121/2012], a proposta é que o usuário fique por um período de até seis meses morando na unidade. As UAs são ligadas aos CAPS Álcool e Drogas [ADs] de referência do território em que estão localizadas. Entendo as UAs como parte e uma das modalidades de cuidado ofertadas nos CAPS ADs que têm esse recurso. As UAAs [Unidades de acolhimento de adultos] atendem o público adulto. As UAIs [Unidades de Acolhimento Infantil] atendem o público infanto-juvenil.

Em geral, os usuários fazem tratamento no CAPS AD e a equipe indica usuários que, naquele momento e dentro das possibilidades – poucas vagas, por exemplo –, faça sentido encaminhar para a UAA. Feita a indicação, o caso é discutido com a equipe da UAA. Quando possível, são realizados atendimentos compartilhados, visitas do usuário na casa, uma ambientação com esse espaço antes da inserção do novo acolhido. Nesse processo é reelaborado o Projeto Terapêutico Singular [PTS] do usuário, levando em conta esse período de passagem no contexto da UA. O PTS é o instrumento que guia os usuários nos serviços de saúde mental, construídos a partir do desejo do usuário e em conjunto com a equipe, designando quais serão os objetivos nesse período de passagem, o que precisa ser cuidado. São demandas diversas, como resolver pendências junto ao Judiciário, restabelecimento de vínculos familiares, questões de cidadania e de direitos, assim como a continuidade do tratamento e participação nas atividades do CAPS AD.

Entendo o PTS como projeto de vida, naquele momento do sujeito. Ainda de acordo com a Portaria desses serviços, as UAAs têm por objetivo garantir direitos e proteção para pessoas em situação de extrema vulnerabilidade em decorrência do uso abusivo de crack, álcool e outras drogas.

A Redução de Danos entra, diríamos, como estratégia, cujo foco é a vida da pessoa, e não a droga. Não é pela via do proibicionismo. Ainda que a pessoa continue usando drogas, escolha isso, nosso trabalho é tentar possibilitar formas de uso que não sejam tão prejudiciais a ela. É a partir do vínculo, das trocas simbólicas, da ampliação de territórios existenciais e, sobretudo, da garantia de direitos humanos básicos, como uma moradia, que a relação do sujeito com a droga vai se modificando. Claro que nem sempre conseguimos ajudar como gostaríamos os nossos usuários, mas pude testemunhar várias transformações na vida de muitas pessoas a partir da garantia de um cuidado em liberdade e dentro da perspectiva da redução de danos, tal qual as UAAs oferecem.

 

P.S.I: A partir da portaria de 1º de julho de 2005, a redução de danos sociais vem sendo parte da política pública de saúde. Quais os ganhos sociais que tivemos desde então?

M.M.S: Um ganho social que ainda não é perceptível para a grande população é o fato de reconhecer o usuário de drogas enquanto cidadão e sujeito de direitos. Muitas vezes, conseguir retomar a autonomia para a vida, conseguir formas de geração de trabalho e renda para se manter no mundo gera ganhos incomensuráveis. Outro exemplo concreto de trabalho com redução de danos foi o programa De Braços Abertos em São Paulo, cujo dinheiro recebido pelos usuários que estavam no programa era injetado no comércio local.

Não sei se consigo mensurar ou dizer os ganhos sociais desde então, mas posso afirmar que redução de danos é uma maneira de fazer saúde pública barata e com resultados expressivos. Desde o início das práticas de redução de danos no Brasil, no fim da década de 1980, com a distribuição de insumos para usuários de drogas injetáveis que compartilhavam seringas, gerando o compartilhamento de doenças, ficou notória a diminuição de gastos na saúde pública com doenças como hepatite, cuja diminuição foi drástica em todo país. Não tenho conhecimento sobre estudos de impacto da redução de danos enquanto política pública, mas certamente eles existem, tanto do ponto de vista epidemiológico quanto financeiro, de dinheiro público. Pesquisadores da área da Saúde Coletiva provavelmente têm estudos que comprovem isso.

Por fim, penso que a referida portaria é relevante, mas deve ser compreendida dentro de um conjunto de portarias e normativas do Ministério da Saúde e outros ministérios em um processo de construção histórica ao longo dos anos.

 

P.S.I: Qual o impacto social que a extinção da política de redução de danos poderia ter?

M.M.S: Não vejo que a política de redução de danos foi extinta a partir de uma canetada do atual presidente da República. São trinta anos de história e construção de todo um campo no Brasil onde muita coisa foi feita, diversas experiências exitosas e reconhecidas internacionalmente, muita pesquisa produzida. Vários tipos de serviços de cuidado foram criados. Não será do jeito que querem.

Existem, sim, ações concretas desde o governo passado que visam rechaçar a perspectiva da redução de danos e a Reforma Psiquiátrica brasileira. Existe uma disputa sobre para onde deve ser designado o financiamento da saúde mental, álcool e drogas. Enquanto os modelos comunitário e em liberdade têm sido sobrepujados, grandes aportes financeiros são prometidos para as comunidades terapêuticas, que trabalham na perspectiva da abstinência, representadas por grandes instituições médicas, como a Associação Brasileira de Psiquiatria. Tem muito dinheiro envolvido nisso, e sabemos de interesses de congressistas e membros do atual governo nessa questão.

Também ocorre uma disputa epistemológica de dois paradigmas de cuidado junto aos usuários de drogas. De um lado, um saber absoluto, representado pelo cientificismo do saber médico positivista, com as formas asilares como perspectiva única de cuidado junto a esse público. Essa perspectiva se coaduna com a chamada “guerra às drogas”.  De outro, a atenção psicossocial em AD e a redução de danos, com sua perspectiva de cuidado em liberdade, garantia de direitos e de base territorial e comunitária, que se coaduna com os princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira.

O recado é claro do novo governo: pretende fazer à força um retrocesso de décadas. Vivemos tempos sombrios e de recrudescimento do fascismo no país. Porém, a resistência será enorme. Inclusive, percebo um efeito inesperado: essas medidas têm motivado o fortalecimento do campo, composto por usuários, trabalhadores, militantes e ativistas.

 

P.S.I: Podemos considerar a abstinência como tratamento de dependência de álcool e outras drogas como eficiente?

M.M.S: Claro que sim. Porém, tudo depende de cada caso, de cada sujeito. Já vi muitas pessoas que somente pela via da abstinência conseguiram se cuidar e transformar a própria vida. Tem paciente em que a redução de danos é a abstinência, isso é uma escolha dele. O sujeito pode escolher a abstinência como seu modo de se relacionar com o álcool ou a droga dentro de um CAPS AD ou uma UAA. A redução de danos não é contra a abstinência, ela é contra o proibicionismo. Só acho que não dá para impor para o sujeito uma via única de cuidado.

 

P.S.I: Tendo em vista sua experiência com redução de danos, pode-se estabelecer alguma relação entre fragilidade econômica e social com a adição?

R.: Com certeza. Nunca deixo de olhar o sujeito no toxicômano, que existe um sujeito ali. Sei que é um fenômeno que perpassa todas as estruturas clínicas. Existem neuróticos, psicóticos e perversos que fazem uso abusivo de drogas. Também tenho plena consciência de que o fenômeno do uso abusivo de álcool e drogas ocorre com pessoas de todas as camadas sociais, inclusive atendo no consultório pessoas com alto poder aquisitivo que possuem problemas decorrente do uso.

Mas penso que levar em consideração a questão social é fundamental na construção de políticas públicas relacionada às drogas. É uma questão que deve ser encarada do ponto de vista intersetorial. De acordo com a Pesquisa Nacional do Crack, cerca de 80% das pessoas que se encontram nas cracolândias espalhadas pelo país começaram a usar crack após uma condição social de grande vulnerabilidade, como perder sua moradia, ficar em situação de rua. Nessa mesma pesquisa, quando indagados se queriam se tratar e o que seria importante ter no local de tratamento, mais de 90% dos usuários consideraram importante ter um local de descanso, alimentação e para higiene. Sim, a rua é muito cruel e violenta com qualquer pessoa, e às vezes é necessário fazer uso de drogas durante a noite toda para ficar acordado e um pouco mais protegido.

Também mais de 90% dos entrevistados demandaram suporte para conseguir um trabalho, retornar aos estudos e conseguir sair da situação de rua. Cuidar de pessoas que fazem uso abusivo de drogas em geral é cuidar dos aspectos sociais, oferecer cidadania, garantir direitos, possibilitar caminhos para uma efetiva reabilitação psicossocial e resgate da autonomia.

 

P.S.I: Há relação entre adoecimento psíquico e fragilidade social?

M.M.S: Acredito que sim. Penso que, se uma pessoa não tem acesso a educação, cultura, lazer, esporte, trabalho e renda, a falta disso também é fonte de angústia e adoecimento psíquico, para uns, mais, outros, menos. Sei que cada um tem uma relação com a castração, mas fico cada vez mais convencido de quanto o social produz adoecimento nas pessoas.

Um exemplo disso é a questão do racismo estrutural no Brasil, e isso tem relação direta com a questão do “combate às drogas”, da “guerra às drogas”. O fato de uma pessoa ser negra em nosso país já a deixa em desvantagem na sociedade. Será que um jovem negro, da periferia, usuário de maconha tem o mesmo tratamento do Estado que um jovem usuário de maconha da classe média de São Paulo? A guerra contra as drogas sempre foi uma guerra contra as pessoas, os usuários de drogas, sobretudo contra o povo pobre, preto e periférico. É o que Bader Sawaia chama “sofrimento ético-político”, de quanto a exclusão gera adoecimento.

 

P.S.I: Segundo a portaria de 2005, um dos objetivos da política de redução de danos é estabelecer um uso mais seguro de substâncias que causem dependência química e de práticas sexuais mais seguras. Essas ações diminuem a fragilidade social das pessoas? Exercem impacto na contenção da proliferação da contaminação por HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis?

M.M.S: Sem dúvida. Quando o Estado disponibiliza seringas descartáveis para usuários de drogas injetáveis com o objetivo de não haver compartilhamento de seringas entre os usuários, o impacto é imediato do ponto de vista epidemiológico. Como disse anteriormente, não posso mencionar estudos sobre isso, mas uma constatação desse impacto foi o jeito de fazer redução de danos no Brasil. No início, a redução de danos era somente a disponibilização de insumos, seringas. Com o tempo, isso não foi mais questão, as doenças sexualmente transmissíveis estavam, de alguma maneira, “controladas” junto aos usuários de drogas injetáveis, não havia mais uma epidemia nos municípios do país. Depois tivemos o advento do crack, quando foi preciso reinventar o jeito de fazer redução de danos no Brasil, não somente a troca de insumos, mas valorizando ainda mais o aspecto relacional e da garantia de direitos.

 

P.S.I: Na portaria citada existem definições de onde essa política deve ser implementada, o que inclui penitenciárias, instituições educacionais de internação de adolescentes, entre outros. Também orienta para o respeito aos direitos humanos e a manutenção da identidade e liberdade de decisão dos usuários. Podemos dizer que essas orientações levam a um tratamento mais eficiente da adição e das doenças mentais?

M.M.S: Eu acredito nessa proposta da redução de danos porque ela leva em consideração o desejo do sujeito, o que ele escolhe para ele. Penso que a efetividade da proposta se deve a isso. Tarcísio Matos de Andrade, um autor baiano, tem uma representação do trabalho do redutor de danos que me faz muito sentido: ele age como os índios adultos agem com as crianças. Eles se agacham para ficar na mesma estatura que as crianças, de modo que elas possam ser olhadas de igual pra igual, na mesma altura. É isso que fazemos.

Além disso, eu diria que a redução de danos é uma perspectiva para a vida de qualquer pessoa, assim como ela pode fazer uma ação de cuidado em saúde ou prática de autocuidado em diferentes espaços. A redução de danos salva vidas de pessoas que não conseguem ou não querem parar de usar drogas. A própria definição é polissêmica. Pode ser uma estratégia, um método, uma política, uma ética. E acrescento: por que não uma clínica?

 

P.S.I: Sabe-se que há uma relação entre a adição às drogas e os aspectos pulsionais do sujeito. Dentro disso, a abstinência como tratamento não parece possível. Quais os argumentos que você poderia nos dar para essa afirmação?

M.M.S: Muitas vezes, a pessoa apresenta uma pulsão mortífera, caracterizada pela relação exclusiva do consumo de drogas. Mas acho que o destino pulsional pode ser inclusive a abstinência quanto ao uso de álcool e outras drogas. Penso que depende da satisfação da pulsão, e que o caminho é a pulsão deslocar-se para outros alvos para se satisfazer. Porém, reafirmo que cada caso é um caso, ainda que consideremos o aspecto social.

O que não acredito é na imposição de um método de tratamento para as pessoas, seja ele qual for. Acreditar que todo usuário de drogas ser internado e submetido à abstinência fará com que ele pare de usar drogas é ingênuo, na minha opinião. A pulsão sempre terá uma forma de se satisfazer, e se não encontrar novos destinos – no caso de quem faz uso abusivo –, é difícil dar conta da angústia que pode advir. Para mim, é importante observar a relação que o sujeito estabelece com o objeto droga e o que pode ser tratado a partir disso. Outro ponto é o fato de que o consumo de drogas faz parte da humanidade, de todos os povos e em todas as épocas. Focar o cuidado na abstinência é estar fadado ao fracasso.

 

P.S.I: Como começou a política de redução de danos no Brasil?

M.M.S: O marco inicial da redução de danos no Brasil foi em Santos, no ano de 1989. Como primeira ação desse projeto, tivemos a distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis por parte da Secretaria de Saúde. Isso gerou muita polêmica, confronto jurídico, mas foi um marco histórico e com resultados efetivos. Outras experiências foram ocorrendo com o passar dos anos em vários locais pelo Brasil. A redução de danos estava atrelada ao campo da DST/AIDS no Ministério da Saúde e Secretarias de Saúde. Isso foi até meados de 2003, quando a questão do cuidado de usuários de drogas foi ganhando força novamente, e o cuidado dos usuários, assim como a própria redução de danos, foi direcionado para a área de Saúde Mental em suas três esferas de governo. Com o tempo, a redução de danos foi conquistando seu espaço pouco a pouco nas políticas públicas, dentro do surgimento de novos serviços de saúde para usuários de álcool e outras drogas, como os Consultórios de Rua, os CAPS ADs e as próprias UAAs. Hoje vejo o campo se reorganizando e se fortalecendo após os ataques que vêm sofrendo por parte dos gestores públicos, sobretudo do Governo Federal, para encarar os desafios que virão pela frente, que não serão pequenos.

Foto: Arquivo pessoal