Enfim chegamos à época em que o corpo não diz mais nada. Se é que alguma vez ele disse! Enfim estamos presenciando que o vernáculo não escreve mais os artigos “o” e “a”, para não constranger os sabores que se diversificaram e não cabem mais na língua! O ‘x’ vem substituir o não pronunciável e assim o gênero se tornou nome de deus que não se pode dizer, tampouco se ouvir.

Se o corpo falou quando Freud nos esclareceu que o corpo falava na doença histérica, foi essa mesma concepção, que pôs a voz no corpo, hoje, revista por psicanalistas modernos, acabou por suprimi-la, declarando que esse mesmo corpo é discurso do outro e não vale nada pelo que já traz em si mesmo: a vida psíquica é sem substância. O corpo, assim, foi reduzido a sua materialidade sem lastro, e na psicanálise de hoje é só uma coleção de equívocos feitos pelo discurso não pronunciado pelos pais, é só aquilo que, muito antes do sujeito falar, já havia sido dito ou pensado sobre ele: um efeito das palavras verdadeiras escondidas na linguagem banal desenham sobre o que vem já pronto uma outra realidade que só usa o suporte físico para escrever sobre ele.

Que bom! Chegamos, enfim, ao corpo sem corpo, ao corpo que é dito – Maldito! –, ao corpo que é soprado, que é hálito, que per-sona, que soa através! E, deste ponto de vista, podemos deduzir e compreender que nada do que é índice no corpo, indica; e que nada do que se preparou antes para receber o outro no próprio corpo – antes de um eu existir em meu próprio corpo – não pode mais nos conduzir a encontrar o outro humano porque, esse mesmo outro, é sem endereço. E aquilo que no seu corpo é “feito para nós” não é assim apreendido porque, em nós, o que significa só aparece se goza – não porque já está lá, ou já existe. E, é claro, como só vamos atrás não de um outro corpo, mas sim de um gozo – porque no final da contabilidade só vamos para a morte -, não há forma que se defina como sendo um gênero, porque forma é tensão, e gozo não é isso, é sempre descarga o seu alvo, e não o encontro com o outro: não é ao outro humano o que a pulsão busca.

Esse pensar psicanalítico tipo assubstancialista, sugere que não há na mente humana nenhum registro do si mesmo e do próprio corpo, e não há nenhuma forma pronta em nossa mente que equivalha ao encontro ou ao encaixe com o outro que se aproxima!

Como o que se busca é nada, não há nada que está à espera de mim quando a minha forma chega junto dessa outra forma e se propõe a entrar em contato realizando um encontro. Vamos atrás de descarga e de morte, e não de uma possível verdade que nos defina, ou pelo menos dê uma pista sobre para onde ir. Se a boca foi feita para o gozo, ela jamais poderá agradecer a chegada do mamilo, menos ainda a do leite!

Depois da psicanálise a noção de necessidade acabou no fundo do Estige e, mesmo que uma boca qualquer procure – e encontre – um seio (mamilo) qualquer, bastando que esse se apresente, nada em nós indica que já sabemos que alguém nos espera para oferecer o que precisamos. Viemos apenas para ir embora, não para encontrar alguém!!!

Quando disseram que somos gozo e que de nós só semblante resta, e que, na verdade, erguemos modelos baseados em histórias que nos dizem e não em conhecimentos que, vagarosamente, formulamos sobre nós mesmos, baseados em nossa auto-observação; quando disseram que a boca não está para o mamilo, assim como o pênis não está para nenhuma vagina, porque não é ao outro que busco e sim a mim mesmo; quando disseram que haveria mais de nós na saliva que escapa da nossa boca na hora da fala em uma sessão de análise, do que naquilo que está sendo dito realmente, então, é certo, tiraram de nós a chance de aceitarmos os corpos que se apresentam e se afirmam como algo para nós, e nos meteram em um mundo do semblante puro, sem substância que o sustente por mais de um segundo no ar. Somos um lugar em uma operação lógica, um dito que não nos anuncia, apenas maldiz, amaldiçoa, antes mesmo de sabermos pronunciar nosso próprio nome.

Enfim, chegamos ao tempo do ‘empoderamento’ (palavra nazista, palavra na(rci)sista), e no tempo no qual o olhar a beleza ganha ares de uma experiência de abuso e de violação de privacidade. Somos um rebotalho psicótico de nós mesmos. Somos restos de um olho invasor, olho desalmado, olho vazio de vida mas cheio de ditaduras, cheio de métricas.

É disso que se protege o corpo? É de ser visto por um olho sem retinas? E de que homem se fala quando a noção de gênero masculino se tornou sinônimo de estupidez, brutalidade e imperialismo machista? De que mulher se fala, quando o único resquício de lembrança que ela guarda do “seu” homem é o último espancamento? Que lembrança é essa que nada mais é que a prevalência da moral vigente sobre o ser vigente?

Que tempo é este?

Estamos no tempo onde todos estamos autorizados a fazer de nós mesmos o que os ditames de uma pulsão, que não procura objetos, nos prescreve, e não damos a mínima quando o mundo e a cultura que nos acolhe se sobrepõem à verdade de cada um como se o uno fosse irrelevante? Orgulho do quê? Liberdade de quê? Somos o que somos, não somos uma decisão tomada politicamente, não somos uma observação filosófica, não somos uma meditação hipotética de destino ignorado. A morte está ali e nos espera, não importa o que fizermos de nós, mesmo que de nós façamos somente um não nós!

Que tempo é esse no qual há uma única condição de ser: a que sejamos um mandato do outro. Então, assim, ao sermos transformados em origamis feitos por uma língua autoritária e raivosa que odeia nossa inescrutabilidade e imprevisibilidade, somos vento e nada. Com essa língua podemos recortar, podemos amputar, podemos colocar o que falta, podemos enxertar, podemos deformar e podemos reformar e transformar a nós mesmos num infinito processo incessante de tomar a forma que nossa insanidade nos aponta para seguirmos, mesmo porque nosso corpo não pode dizer nada em sua defesa, já que sua voz não fala. Ele está nas mãos de um deus louco que o refaz a cada mudança de humor que sofre.

Enfim chegamos ao tempo em que nossa organização pulsional evoluiu ao seu ponto mais alto, e este ponto não passa da fase anal. Os genitais morreram quando foram substituídos pelas palavras e quando foram dominados pelos enredos francamente psicóticos que narram o sexo como experiência de poder, e impõem que o membro não seja mais apenas o pequenino pipi, mas o enorme monumento fálico que impede que a vida erótica seja bissexual. Quando há o fálico o que não é fálico é castrado. Isto é: quem tem vagina não tem vagina, tem uma castração a céu aberto, e não um órgão que aguarda a chegada de outro órgão. E isto faz da mulher um não homem. Ou seja: para nossa mente psicótica nunca seremos bissexuais, porque o que nos faz ter gênero são pirações sexuais, maluquices, doideiras… são paranoias sexuais, são alucinações sexuais, são delírios sexuais de que somos seres originalmente iguais, e que ficamos diferentes porque alguns de nós foram castigados com a castração. Esse delírio mitológico denuncia primeiro que necessitamos de castigo para sermos um gênero, e, segundo que só suportamos a realidade se a encobrirmos com fábulas. Fábulas que nascem basicamente de nossa incapacidade para suportar a dor psíquica derivada da verdade que se afirma ali diante de nossos olhos, e, assim, somos incapazes de obter o conhecimento simples que está ali disponível no cotidiano reconhecendo somente a nossa franca diferença.

Mas… A psicose nos dita, sem levar em conta nosso pobre corpo e sua forma. É esse dito psicótico o que nos determina e não aquilo que do próprio corpo foi “feito para”.

Esse para algo do corpo de todos nós, foi embora quando o que se diz, e não a forma como se experimenta o ser na vida, é o que nos constitui.

Interessante é tentar saber quem ou o que nos diz para sermos como somos. De onde vem essa voz? De onde parte esse olho? É interessante pensar que alguma voz nos fala, e daí é interessante também pensar que a voz que nos fala não tem som, ela é áfona. Mas, no entanto, mesmo áfona, obriga o sujeito a ser o que ela afirma que ele é, sem que precise falar. Ouvimos o que somos, mas, ao redor, tudo é silêncio e desespero. Ninguém confirma nada se eu, por ventura, perguntar: você ouviu isso que a voz me disse?

Se Foucault expôs com o Panóptico de Bentham a sistemática e a influência dos dispositivos sociais disciplinares, apostando na arquitetura da vigilância como modo de controle social do eu de cada um, acabamos sabendo que aquilo que os egos “dizem ser” é derivado da mecânica das políticas de massa, e das morais ajuizantes, que não passam de sistemas disciplinares externos e internos que podem muito bem ser chamados de camas de Procusto, uma vez que sempre prontas para corrigir os excessos e acrescentar as faltas nesse corpo tão ‘errado’, tão falho e impróprio. É este gênero moral do sexo que se encontra, hoje, em clara evidência e à disposição! O gênero agora é feito a bisturi, a silicone, a enxerto e a amputação. O maravilhoso sexo moral do sujeito contemporâneo! Juízo de gênero, juízo de ser, ser como obediência a um julgamento e como expressão da submissão à opinião pública sobre o que se é. Este é o resultado de atendermos os imperativos impostos por uma cultura, que se aprimora, a cada dia, em seu ódio pelo óbvio e pelo que desnecessita de enunciado.

Por outro lado creio que, se percorrermos a história do corpo nos povos civilizados de todas as épocas, poderemos notar que toda civilização é também uma clara proposta de deformação do corpo! Há algo no corpo que civilização alguma suporta. Por isto exige que o singular de cada um seja somente mais um modelo a ser obedecido para que, daí, esse sujeito venha a ser aceito pelo social-ismo ou “senso comum” prevalente no grupo no qual se tem pertinência. É o olho sem nome de todo campo social que nos vê e restringe. É o Panótptico de Bentham, intragrupal e intrapsíquico!

Enfim! Todos sabemos que o eu para o grupo é mais um problema que uma solução – mesmo que sem eus não se forme um grupo -, e que é mais uma perturbação que uma contribuição. O grupo admite o eu e o deseja até o momento em que esse eu é útil ao que o grupo quer que seja deliberado sobre a sua (do grupo) própria necessidade. Essa deliberação é o que dita o que é ser um eu quando é o nós que comanda.

Fora disso o eu só interessa ao seu possuidor. A mais ninguém.

Se considerarmos o narcisismo como uma reação defensiva do eu do sujeito à indiferença absoluta do grupo por ele, poderemos compreender melhor que a nossa identidade sexual pode estar empacotada neste pequeno problema de sermos apenas mais uma capa defensiva que um ser que vem a ser ele mesmo porque está sendo esperado. O que resta? Apenas mais uma cobertura que não revela nada, só encobre o que o grupo odeia.

Mas se narcisismo for a paixão erótica por si mesmo, e há quem diga isso… Então teremos que reconhecer que algo em nós busca fazer do eu um objeto de amor e de paixão; e isto gera um tipo de jogo que envolve submissão ao amor do outro, e gera um tipo de troca perversa, na qual se paga qualquer preço para obter esse suposto amor dentro do olhar do outro. Neste caso, o sujeito recebe nome e gênero apenas se oferece, àqueles por quem espera ser amado, obediência.

Interessante notar, então, que para sermos amados, no narcisismo, temos que estar na voz passiva! Ou seja, alguém deve nos amar agora que somos um eu feito para ser amado! Eu sou amado. Uau!!! Pagamos caro por isso.

No entanto se o amor que Narciso procura é Eros que vem do mundo, para que então um eu serve se não para se submeter ao amor? Isto é, quem é esse que ama o eu ao qual o eu, para ser alguém ou algo, se submete ao amor?

Se é por apoio no amor do outro que um eu é, então sua identidade sexual deriva daquilo que o outro quer ver em nós? Seremos então o objeto de um olhar que não está mais fora de nós e que só exige que sejamos o que ele “quer” ver? É esse olhar que diz quem somos para sermos eroticamente definidos, e, daí, amados? Seria o gênero é um fenômeno subsidiário ao amor? E o que seria, então, o amor? Desejo de amor? Ou oferta de amor? Submissão/amor?

Ao pensarmos nos artistas que usam o corpo como campo para uma performance, inclusive sobre o amor, ao estilo de Marina Abramovic e outros, notamos que a ameaça, o controle e a destruição do corpo estão ali apresentados como ato artístico! Porém deixemos o amor e a arte para lá, e para encerrarmos nossa reflexão com mais um pouquinho de horror: pensemos na pele de um sujeito tatuado!

O que são os corpos e as tatuagens que recobrem a pele do corpo com um imaginário cheios de memórias e promessas nunca realizadas?! Quadros e mais quadros desenhados sobre a pele. Cartas, preces, súplicas, lutos, saudades, visões e visões que cobrem a nudez de um corpo que não pode ser visto, ou que só poderá ser visto depois que comer a maçã. Que destino!

E assim encerro minha fabulação. Deixo com vocês somente as peles desses homens “óleo sobre tela”, “tinta sobre pele” que já estão vendidas, e serão retiradas cirurgicamente após a morte do tatuado[1], para serem penduradas nas paredes de milionários, que não sabem mais como se livrar do dinheiro que têm.

É este o preço que se paga pelo corpo que se tem?

Bem… fica aí a reflexão! Identidade e diferença sexual??? O que será isto, se não sabemos nem sequer o que o corpo já disse aí quando se apresentou como é?

 

Notas:

[1] https://www.magnusmundi.com/masaichi-fukushi-o-colecionar-de-pele-tatuada/

 

Sobre o Autor:

Emir Tomazelli é psicólogo, psicanalista e professor.

E-mail:dr.tomazelli@gmail.com.