Por Isabel Tatit

A solidão vem sendo tratada em publicações científicas e de divulgação, alternadamente, ora como experiência positiva, ora negativa. É claro que as reflexões mais interessantes superam essa falsa divisão e abordam variados ângulos da solidão, especialmente distinguindo o estado de solitude do sofrimento por se sentir só. Quando vista como problema epidêmico, pode ganhar tratamento mais político (no qual tanto causa quanto solução estão no campo social), mas muitas vezes ainda é circunscrita ao âmbito da patologia individual, quase como noção herdeira da depressão.

Temos visto, ultimamente, o pêndulo se voltar para as abordagens sociais. A solidão tem despontado em diversas publicações atuais[1] como questão política, ampliando a discussão para além do campo médico tradicional. Fala-se em epidemia da solidão, estabelecendo-se, assim, como paradigma das narrativas de sofrimento contemporâneo, do qual a medicação, na maior parte das vezes, não dá conta.

Andrew Solomon, o autor da bíblia sobre depressão (Demônio do meio-dia, Cia. das Letras), lançou, no ano passado, um livro que segue a esteira do pensamento que associa solidão à depressão, mas traz profundas implicações do tema nos campos subjetivo, social e político. Além dos livros, o escritor americano tem articulado psicologia, medicina, cultura e política em textos muito comunicativos no The New York Times e no The New Yorker. Tem tido grande atuação como ativista e filantropo em direitos LGBT, fornecendo, por exemplo, bolsas de pesquisa aos alunos de graduação da Universidade de Yale que se engajam em estudos dessa área.

Estão reunidos no livro Um crime da solidão: reflexões sobre o suicídio (Cia. das Letras, 14x21cm, 112 páginas) artigos e ensaios costurados pelo tema do suicídio. O título original “On Suicide”, no entanto, não traduz tão fielmente a temática do livro como o título recebido no Brasil. Por que a tradução brasileira escolheu dar destaque à solidão? Certamente, é um tema que tem ganhado relevância nas bibliografias nacionais dos últimos anos. Mas de que solidão Solomon trata?

Ao longo dos capítulos, o leitor acompanha as reflexões sobre mistérios e contradições da insaciedade subjetiva nos diversos tipos de vínculo: familiar, amoroso, fraterno (privado) e com o público. Como por exemplo nos capítulos “Anthony Bourdain, Kate Spade e as tragédias do suicídio que podem ser evitadas” e em “Suicídio: um crime da solidão”, sem tentar definir uma causa final, Solomon discorre sobre suicídios de pessoas talentosas, bem-sucedidas financeiramente e reconhecidas socialmente. Além dos já citados, comenta causas e efeitos no laço social da morte de Robin Williams e de Virginia Wolf.

Antes de partir para os casos socialmente conhecidos, Andrew Solomon relata dois casos de suicídio que marcaram sua vida pessoal. A proximidade do autor com tal experiência e a reflexão posterior aos acontecimentos marcam o tom da leitura do resto do livro. No primeiro capítulo, relata a perda de um grande amigo de adolescência: uma pessoa interessantíssima, pela qual o leitor vai nutrindo grande empatia. Quando tomamos fôlego e coragem para ler o segundo capítulo, deparamo-nos com a escrita sobre o suicídio de sua mãe, que sofria de um câncer terminal, assistido por ele, pai e irmão. A morte em vida, a falta de sentido, a finitude do desejo anterior à morte em si, são temas de difícil simbolização, mas que o autor consegue transmitir ao leitor com muita sensibilidade, por meio de suas narrativas cheias de afeto.

A solidão também está presente no livro de Solomon como experiência da subjetividade que se afunda nos desencontros amorosos ou que sofre do desamparo das diversas injustiças sociais (o autor trata principalmente da homofobia). A solidão se torna irreparável na vida de diversas pessoas, muitas vezes seus efeitos são catastróficos e não tem causa evidente. O livro traz a ideia, ao mesmo tempo, intuitiva e cruel, de que não é tão simples fazer companhia a alguém, tampouco se sentir acompanhado de fato.

Em “Anatomia de um homicídio-suicídio”, retoma a solidão fatalmente difícil de contornar nos casos dos adolescentes que cometem assassinato em massa e depois se matam. Massacres como os de Columbine e Newtown revelam que o suicídio não é tão notícia quanto o homicídio. Aparentemente, o ato de ódio voltado aos outros é mais ameaçador do que a insatisfação da pessoa com a própria vida. No entanto, se quisermos conter a violência, nos alerta Solomon, precisamos começar por conter o desespero. Desconstrói preconceitos e diagnósticos estereotipados que circundam esses casos: não, os pais do adolescente eram pessoas admiráveis, éticas, inteligentes e bondosas. Ao mesmo tempo, é recorrente o fato de todos saberem que havia algo muito errado com esses adolescentes. O isolamento social dessas pessoas e a dificuldade de acessarmos suas questões também eram temáticas comum.

Muitas vezes, o livro nos provoca angústia por não nos dar receita para solucionar essas tragédias. A solidão e o isolamento vencem em muitos casos. Contudo, o autor traz ponderações interessantes. Entender que esse tipo de tragédia atinge a todos (os que morreram, os que mataram e tinham desejo de se matar e também suas famílias) tende a produzir boas reflexões e boas políticas. O contrário ocorre quando há um movimento obcecado de culpabilização das famílias dos assassinos. A condição humana é capaz de produzir horror, precisamos lidar socialmente com isso.

Tivemos recentemente alguns casos de suicídio de adolescentes em colégios de São Paulo. Quem trabalha próximo aos jovens, sabe que solidão, isolamento e suicídio são temas cada vez mais frequentes em suas falas. Além disso, dados de 2016[2] mostram que o Brasil é o primeiro no ranking de mortalidade por arma de fogo. Para aquecer esse caldeirão de tragédias, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que flexibiliza a posse em casa de até quatro armas de fogo por pessoa. Solomon é contundente quando afirma que, historicamente, os estados com fraco controle de armas apresentam índices de suicídio consideravelmente mais altos do que aqueles com leis mais severas. Infelizmente, não podemos estancar todas as tragédias, mas, certamente, boas políticas públicas podem evitar muitas delas.

[1] Além do livro aqui resenhado, podemos citar O Dilema do Porco Espinho: como encarar a solidão, de Leandro Karnal (2018) e Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano, de Christian Dunker (2017), como exemplo de livros recentes que abordam insistentemente o tema numa perspectiva social, histórica, política e psicanalítica.

[2] Dados da Global Burden Disease, órgão da Organização Mundial de Saúde (Ver. http://www.healthdata.org/news-release/six-countries-americas-account-half-all-firearm-deaths)