O uso de fármacos acompanhou a medicina ocidental durante toda sua história. Acompanhou também as assim chamadas medicinas tradicionais ou aquelas não tão tradicionais, mas que se opuseram à medicina alopática oficial (homeopatia, florais).

O uso da palavra para o tratamento, entretanto, no campo da medicina ocidental, foi uma novidade introduzida ao mesmo tempo em que a psiquiatria moderna nascia. As últimas décadas do século XIX assistiram os nascimentos. Freud e Kraepelin foram os papais.

O próprio Freud escreveu dois pequenos textos, “Sobre Psicoterapia” e “Psicoterapia (tratamento anímico)”, com a preocupação de demonstrar que a psicoterapia não era uma forma de ‘misticismo moderno’. Ludwig Binswanger também preocupou-se em esclarecer sobre a racionalidade do trabalho psicoterapêutico. Ambos consideraram que, pela psicoterapia usar como meio fundamental a palavra, ela poderia ser confundida com magia e funcionasse na base de conjurações. Ambos supuseram, então, que, pelo fato de não existir uma ação direta sobre o corpo, a psicoterapia ficasse fora de uma ação terapêutica válida.

Como se sabe, Freud e Binswanger e, certamente, muitos outros, tiveram sucesso. A psicoterapia expressiva, linguageira, foi incluída como meio terapêutico pela psicologia e pela medicina de origem iluminista. Foi, inclusive, o meio terapêutico mais aplicado até muito recentemente.

Não obstante, no período em que tal se dava, uma série de tratamentos de origem biológica foram desenvolvidos. No campo da medicação, cocaína, anfetamina, alucinógenos, brometos foram aplicados. A malarioterapia rendeu o Nobel a Von Jauregg. Outros tratamentos de choque seguiram: o choque cardiazólico, o choque insulínico e a eletroconvulsoterapia (desenvolvida por Cerletti e Bini, nos anos 30 do século XX e aplicada cada vez mais atualmente).

Assim, houve uma convivência pacífica entre o tratamento pela palavra e os tratamentos biológicos. Essa convivência pacífica sobreviveu ao surgimento da era psicofarmacológica para o tratamento do sofrer psíquico. Tal era tem sua largada quando Pierre Deniker e Jean Delay, em 1954, usam o pré-anestésico, Clorpromazina, no tratamento da agitação psicótica. Há sucesso nessa tentativa. Segue-se a síntese de outras medicações com funções distintas: a Imipramina, antidepressivo que vem reunir-se à Isoniazida, e o Clordiazepóxido como primeiro tranquilizante. Nessa época, os novos fármacos foram saudados como ‘empuxos à psicoterapia’ pelos psicoterapeutas, psicanalistas e psiquiatras. Isto é, aqueles sujeitos de difícil acesso pela via da palavra, poderiam, com a colaboração farmacológica, beneficiar-se do tratamento intersubjetivo. Uma coalizão entre os dois tratamentos foi, então, a marca no alvorecer da era psicofarmacológica.

A coalizão durou alguns anos. Até a psiquiatria e a economia encontrarem-se na encruzilhada. Como se sabe, encontros em encruzilhadas podem ser angelicais ou demoníacos. Esse foi demoníaco!

Pois, desse encontro, a psiquiatria, que trazia a psicoterapia no seu regaço, foi objeto de avaliações que buscavam definir relações entre custo e benefício. Tais avaliações, obviamente, procuram o máximo benefício com o menor custo. A psiquiatria que trazia a psicoterapia em seu colo, carregava em seu ventre um novo sistema diagnóstico: a terceira edição do Diagnóstico eStatístico Manual (DSM-III), que veio à luz em 1980. Tal Manual propunha uma descrição naturalística dos distúrbios mentais que seria ateorética, isto é, atinha-se ao fenômeno como fato objetivo e tal descrição não seria influenciada por nenhum sistema teórico. A ambição – se tal posição epistemológica fosse viável – é que as descrições servissem a todos os envolvidos com o sofrer psíquico: médicos, psicólogos, psicanalistas, comportamentais, cognitivistas, existencialistas, psicodramatistas e toda a diversidade ‘psi’, então, beberia a mesma água.

Acreditou-se que o encontro na encruzilhada fosse, então, com o anjo da unidade que preservaria a diversidade. Ledo engano. O encontro não foi com o anjo. Foi com o demônio do economicismo. Este prefere a unidade mesmo que esta anule a diversidade.

A proposição do maior benefício pelo menor custo passou a reinar. A função da medicação como ‘empuxo à psicoterapia’ tornou-se uma competição entre as duas modalidades de tratamento, sob a égide do que custa menos. A pletora de artigos “científicos” que ocupou boa parte das páginas dos principais periódicos psicológicos e psiquiátricos, nas duas últimas décadas do século XX, dedicou-se a demonstrar em números, planilhas, estatísticas aquilo que é tão evidente que vai ao chão pelo próprio peso: tratamentos medicamentosos são menos custosos que os psicoterapêuticos. Então: não é que as psicoterapias fundadas na psicanálise que são expressivas, linguageiras, interpretativas não funcionem. Elas funcionam, mas custam mais.

Então…

 

Sobre o Autor:

Durval Mazzei é psiquiatra, psicanalista, membro do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da Escola Brasileira de Psicanálise – EBP, seção São Paulo.

E-mail: dr. durval@uol.com.br.