Inicio com uma frase de Collete Soler (2005): a histeria é uma coisa muito precisa. Precisa e, acrescento, preciosa.

Precisa e preciosa por dois motivos: o primeiro, como diz a própria autora, não devemos confundi-la com a feminilidade, com o gênero feminino, com anatomia, com loucura. E preciosa, como a leio, por fazer resistência a alguns imperativos que o tempo e os discursos vigentes de cada época impõem.

Pensar, estudar, trabalhar com a histeria na psicanálise nos remete a um funcionamento do sujeito no qual uma de suas maiores peculiaridades é desejar e fazer desejar. Foi com as histéricas (e elas tiveram uma participação ativa!) que Freud criou a psicanálise. Aliás, porque não dizer que quem inventou a psicanálise foram as histéricas? O que fez Freud foi escutar atentamente em seus relatos o desejo de seus pacientes dando uma abertura para que expressassem em palavras os seus sofrimentos, medos, amores, culpas, e todo o mal-estar que sentiam devido (também) à repressão sexual vigente em sua época. Freud escutou as suas histéricas como sujeitos desejantes e isso foi muito importante porque, antes da psicanálise, eram tratadas como objeto de investigação médica.

Ora, é importante lembrar que histeria é um termo que vem do grego hystero e significa útero. Nasce por volta do século 4 com Hipócrates em uma tentativa de explicar que o útero era o responsável pela loucura das mulheres. Para ele o útero revirava pelo corpo, passeava, fica de ponta cabeça, subia, descia. O útero, ou a matriz, como era denominado por ele, andava pelo corpo em busca de umidade, já que ele supunha, entre outras coisas, que a histeria se desenvolvia pela privação de relações sexuais e pelo útero ser seco.

Saltando um pouco no tempo, na idade média, por exemplo, a histeria sofre a influência da religião passando a ser objeto da teologia. As convulsões e as sufocações da matriz são consideradas expressão de um prazer sexual e por conseguinte de um pecado. A histérica era pecadora, vista como possuída pelo demônio que a fazia agir involuntariamente, simulando doenças.

Sempre objeto de estudos, sempre errante, passando de mãos em mãos, saberes em saberes, chegamos em Charcot no século XIX. Este médico neurologista faz da histeria uma entidade clínica respeitável, descrevendo e classificando-a, fazendo dela um tipo clínico e, assim, aos poucos as histéricas deixaram de ser simuladoras de doenças. Além disso, um dos maiores legados de Charcot foi descobrir que a histeria afetava (também) os homens, sendo esta uma de suas principais contribuições à histeria traumática, sendo esta a teoria que Freud herdou.

Neste cenário Freud chegou e escutou uma voz que ali já existia. Ora, as mulheres, (sendo elas histéricas em seu tipo clínico ou não) sempre falaram, sempre tiveram voz, não à toa pagaram o preço com o próprio corpo ardendo nas chamas da inquisição. O revolucionário de Freud foi direcionar sua escuta para o desejo de seus pacientes, desejos que, obviamente, já estavam lá. Escutar os sujeitos e reconhecer que ali, na fala, havia uma singularidade de desejo foi o maior legado que Freud nos deixou.

Aqui, lanço uma pergunta: por que falar de histeria, ainda hoje? Já que ela foi excluída, fragmentada nos manuais diagnósticos e ao mesmo tempo continua tão estudada, revisada, ou seja, há uma vasta literatura psicanalítica sobre a histeria e ainda insistimos em estudá-la, bem como escutá-la. No meu caso, insisto porque concordando com Coutinho Jorge, seja a histérica queimada na fogueira ou no consultório médico, o que “ali se incinera e se esfuma é o desejo do sujeito”[2]. Insisto, inclusive, porque a histeria é um potente discurso que pode fazer furo no patriarcado, nos discursos segregadores e excludentes, questiona a misoginia no discurso capitalista, já que ela pode indagar e denunciar diversas formas de opressão. Voltarei a isso.

Sobre o desejo? Vale lembrar que em psicanálise o desejo é histérico no sentido de que a invenção da psicanálise está vinculada ao que uma histérica no final do século XIX disse a seu médico: “não se mexa! Não diga nada! Não me toque!”. Emmy von N. foi uma dessas pacientes que começou a falar ininterruptamente descarregando todas as lembranças dolorosas e por meio da fala seus sintomas foram se dissolvendo.

Outro ponto que merece ser lembrado é que a estrutura do desejo enquanto conceito psicanalítico não tem objeto, e na neurose, principalmente no que concerne à histeria, existe uma hiância entre o objeto procurado e aquilo que é encontrado, deixando o sujeito numa sensação permanente de insatisfação, traduzida por um “não é bem isso”. Ora, nunca é bem isso! Pois, nenhum objeto é capaz de satisfazer a pulsão. Eis um indício da castração sofrida pela estrutura. Em psicanálise, portanto, desejo é um pulso desejante.

De acordo com Lacan, a fórmula do desejo histérico vale para o desejo do sujeito em geral, podendo ser traduzido pelo mote lacaniano “o desejo é o desejo do Outro”. Entretanto, há uma particularidade no desejo histérico e concordamos com Collete Soler ao dizer que: “O desejo insatisfeito se distingue como uma estratégia de absolutização do desejo. Uma outra fórmula para o desejo insatisfeito seria “desejo de desejo”, antes uma defesa contra o gozo. Sustentar o desejo insatisfeito é assegurar a presença mantida do desejo, isto é, da falta, pois satisfazê-lo é ou extingui-lo ou decepcioná-lo.”[3].

Que importante é o desejo insatisfeito do histérico, pois é ele que mantém a vivacidade do desejo.

Charcot escreveu que “o histérico sempre existiu. Em todos os lugares e em todos os tempos”. Não há como discordar dessa afirmativa, uma vez que o que muda, é o Outro do discurso e as vestes da histeria acompanham o colorido de cada época, brilhando ou ofuscando de diversas maneiras (dependendo dos olhos de quem as vê). Com Freud, por exemplo, Elizabeth von R. tinha dores nas pernas, Dora sofria de uma tosse nervosa, Emmy von N, alucinava, tinha alterações de humor (angustia, depressão melancolia, fobias, abulias, entre outras coisas – usando as palavras de Freud). E hoje, na contemporaneidade, como se apresentam as roupagens de certos sujeitos histéricos, quais seriam as vestes do histérico de nossa época? Já que, se podemos dizer, estamos numa época marcada pela homogeneização, padronização e massificação e por conseguinte negação da singularidade em prol de um imperativo de gozo e de ideais inalcançáveis.

A psicanalista Carmen Gallano assinala algumas formas de manifestações discursivas histéricas no discurso capitalista, o que ela nomeia de “patologias do ato”, como por exemplo, as dores fatigantes, fibromialgias, os bruxismos que ela chama de “bruxismos histéricos” – as bocas de chumbo, que desafiam os dentistas e cirurgiões a forçarem a abrir, cito Gallano: “essas mandíbulas lesionadas por tão longo tempo contraídas com a amargura de dentes apertados e que rangem.”[4]. Há, assim, uma ruminação que não cessa e não dá lugar as palavras, já que esses sintomas histéricos não dirigem uma pergunta ao Outro do amor e nem mesmo a um desejo insatisfeito pela identificação à falta. E temos, também, a conhecida prática cutting, o ato de cortar-se, essa automutilação em que “há um rechaço do corpo do histérico que o divide como sujeito, o condena a ser corpo abandonado a si mesmo…”[5]. Assim, o discurso capitalista que incita o direito ao gozo por meio do imperativo de consumo, consome os sujeitos.

Passo rapidamente por algumas particularidades referentes a histeria para a psicanálise, sem, no entanto, me aprofundar, pois quero, para ir caminhando ao final, colocar algumas questões inerentes ao que desenvolvi para o evento o qual participei sobre a Misoginia na psicanálise, no Instituto Geral em 2017. Este é o segundo momento de meu texto.

Em Radiofonia Lacan diz que “a histérica é o inconsciente em exercício, que põe o mestre contra a parede de produzir um saber”. Como podemos observar não há nada que coloque a histeria como sendo uma mulher. Ao contrário. O que Lacan está dizendo, é que em todo o sujeito existe histeria e Collete Soler se pergunta: “Porque esse preconceito e essa confusão com a feminilidade?”[6]. E aqui, me permito algumas divagações e outras perguntas sobre isto. Uma coisa é o senso comum e o discurso segregador e concentra-dor utilizar desse pré-conceito de uma forma rasa e imediatamente associar a mulher com a histeria. Toda mulher que se posiciona é histérica. Toda mulher que se assume como desejante é histérica. Ser feminista é ser histérica. Ser falante é ser histérica. Esta mulher fala demais, é uma histérica!

Pois bem, misoginia: do grego miseó = ódio; ginia= giné: gineco, vagina = mulher. Ódio à mulher. Como também medo da mulher.

Mas, para falarmos de Misoginia na psicanálise, é preciso antes dizer da misoginia na sociedade. Nossa sociedade é misógina e o psicanalista faz parte da sociedade. O que não quer dizer que todos os psicanalistas sejam misóginos. Aliás, tendo a acreditar que a maioria não é. Entretanto, quando um ou uma psicanalista escuta (se é que podemos chamar isso de escutar) ou identifica imediatamente que uma mulher é histérica, por ser mulher, não estaria ele sendo misógino? É mulher, logo é histérica…

Sabemos que a posição sexuada do ser falante não respeita a anatomia e a anatomia não define a escolha de objeto. Em psicanálise escutamos o sujeito de desejo e seus modos de gozo. Se por um lado, quando falamos de homem e de mulher não estamos nos referindo ao gênero e nem a anatomia, de outro lado, em nossa sociedade misógina, mulheres morrem por serem mulheres (anatomicamente falando) são assediadas, estupradas, temos medo de andar nas ruas sozinhas a noite. O Brasil, vale lembrar, é o 5º país em que mais morrem mulheres.

Anatomia não é o destino, entretanto somos marcadas por ela. Este paradoxo deve ser escutado pelos psicanalistas. Então pergunto: quanto e como alguns analistas estão dispostos a escutar que para além do sujeito do inconsciente há o indivíduo na sociedade, há o social que nos marca, marca os sujeitos que chegam na clínica e que trazem para além da construção da fantasia um medo real, de abusos, violências, assédios… e isso vale para os homossexuais, transexuais, travestis, negros e a toda a minoria do ponto de vista político. Ou seja, o psicanalista que não escutar o horror, o medo real (no sentido de realidade) de uma mulher, e apenas escutar que tudo é fantasia histérica não estará sendo ele misógino? Na clínica, e isto está muito claro, o que nos importa é fantasia que o sujeito constrói a partir de um evento traumático, mas insisto no paradoxo: em todos os casos? Sempre? E a realidade misógina que abusa e mata mulheres por serem mulheres?

Quanto ao desejo histérico, não há dúvida de que se trata de um desejo potente em seu discurso, pois ele é transgressor, revolucionário e de muita resistência. Assim vou terminando com um trecho de uma carta em que Lou Salomé contesta magistralmente Gillot – um pastor da igreja protestante – ao censurá-la severamente por se deixar levar por “projetos infantis”. Ela responde: “Não posso viver obedecendo a modelos, nem jamais poderia representar, para quem quer que fosse, um modelo. Mas é inteiramente certo que construirei minha vida segundo aquilo que sou, aconteça o que acontecer. Fazendo isso, não defendo nenhum princípio, mas sim alguma coisa bem mais maravilhosa, alguma coisa que está em nós, que arde no fogo da vida, que exulta e quer brotar. Certo, o senhor também escreve que jamais me viu abraçar objetivos puramente intelectuais senão como mera “transição”, mas o que o senhor chama de “transição”? Se existem pela frente outros objetivos que nos obrigam a renunciar ao que há de mais magnifico e de mais difícil de se obter na face da terra, ou seja, a liberdade, então, quero permanecer sempre em estado de transição, pois não a sacrificarei.”[7].

 

Notas:

[1] Texto originalmente apresentado em roda de debates sobre a Misoginia na psicanálise no Instituto Gerar (2017).

[2] JORGE, M. A. C. Discurso médico e discurso psicanalítico. In: Jean Clavreul: A ordem médica: Poder e impotência do discurso médico. Cidade: Rio de Janeiro, ed: Brasiliense, 1997, p. 18.

[3] SOLER, C. O que faz Laço? São Paulo: Escuta, 2016, p. 55-56.

[4] GALLANO, C. Histeria do Século XXI. In: BRUNETO, A. (Org.). Histeria e Neurose obsessiva: O corpo e os fenômenos contemporâneos. Rio de Janeiro: AFCL, 2014

[5] Ibid., p. 61.

[6] SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 42.

[7] SALOMÉ, L.A. (1882) Minha vida. São Paulo: Brasiliense Editora, 1985.

Sobre a Autora:

Renata Rampim é psicanalista, mestra em Psicologia Social pela PUC/SP, atua como psicóloga na saúde pública e atende em consultório.

E-mail: renata_rampim@yahoo.com.br