Sendo o vazio indiscernível enquanto termo (pois é não-um), sua ocorrência inaugural é puro ato de nomeação. Esse nome não pode ser específico, não pode classificar o vazio no que quer que seja que o subsuma (BADIOU, 1996, p.55).

A arte, a ciência e a política mudam o mundo, não pelo que nele discernem, mas pelo que nele indiscernem (BADIOU, 1996, p.270).

Como a base de toda arte é conflito (uma transformação imagística do princípio dialético). A tomada (plano) surge como célula de montagem. Por conseguinte, deve ser também considerada a partir do ponto de vista do conflito […] Conflito dentro do plano é montagem potencial, que, no desenvolvimento de sua intensidade, esfacela a prisão quadrilátera da tomada e explode seu conflito em impulsos de montagens entre as peças da montagem. Como num ziguezague de mímica, a mise en scène jorra num ziguezague espacial com mesmo esfacelamento (EISENSTEIN, 1929/1977, p.177).

Badiou escrevia sobre o forçamento. Mostrava como, ao forçar o indiscernível, estabelece-se o indecidível. Einsenstein, por sua vez, falava sobre a cinematografia, a montagem, enquanto colisão e conflito. Sua base: o ideograma e o haicai. Frisava uma anti-cadeia. Digamos, já em termos psicanalíticos: uma anti-cadeia que faz ressoar outra coisa.

O psicanalista, orientado pelo não-todo, força o indiscernível (vazio) e assim pode deixar abrir o efeito feminizante. Estabelece, assim, o indecidível posto do lado mulher (não-todo) das fórmulas da sexuação. O falasser seria, disso, um produto: S1, uma letra-signo. Esfacelamento quadrilátero que abarca o possível (da suspensão de sentido) não mais (apenas) encadeado.

Lembremos do tantas vezes citado trecho do Seminário 24 de Lacan:

Se vocês são psicanalistas, vocês verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outra coisa, outra coisa que o sentido […] O sentido, isso tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética vocês podem ter a dimensão do que poderia ser a interpretação analítica […] Não que toda poesia seja tal que a possamos imaginar pela escritura, pela escritura poética chinesa […] Que vocês sejam inspirados por alguma coisa da ordem da poesia para intervir, é bem em direção a que vocês devem se voltar (LACAN, 1976-77, aula de 18 de abril de 1977, inédito [negritos meus])

Pela escritura poética (mais precisamente a escritura poética chinesa) nós temos a dimensão da interpretação analítica. As questões da escritura, da tonalidade e da modulação da voz aparecem em destaque neste colocar o corpo que o cantarolar poético realiza. Não obstante, de modo bastante sutil, ele igualmente implica a lógica no que nos mostra.

Sim, o poema e o grafema (do ideograma) não passam sem a lógica. Para fazer ressoar outra coisa que o sentido, para isso parece ser preciso um forçamento – forcing. Pois bem, o forçamento revela um indiscernível (ou inexistente), pois como uma técnica que é, realiza uma operação na qual se obtém uma extensão (um conjunto) por adjunção de uma parte indiscernível, uma parte genérica, que é desconhecida na situação, mas que existe (BADIOU, 1996).

Lacan havia, então, articulado o forçamento-interpretação à poesia chinesa. Eisenstein, da mesma feita, deixa clara a dívida que o cinema, tal qual concebido por ele, tem com a poesia, mais especificamente, com o princípio do haicai.

Vejamos o que o cineasta nos propõe:

Ele concebe a cinematografia como montagem. Diz que, no cinema, combinam-se “tomadas que pintam” (EISENSTEIN, 1929, p.168) e busca: “um laconismo máximo para a representação visual de conceitos abstratos […] o laconismo nos fornece uma transição para outro ponto. O Japão possui a forma mais lacônica para a poesia: o haicai” (EISENSTEIN, 1929/1977, p.168).

Segundo Eisenstein, o ideograma fornece as condições para a impressão lacônica. Propõe este mesmo enxugamento (redução) para a montagem cinematográfica, que se daria, igualmente, por colisão de uma combinação de símbolos.

Não é esse o processo do ideograma, que combina uma “boca” isolada e o símbolo dissociado de “criança” para formar o significado de “grito”? […] Não fazemos, nós do cinema, com o fluxo temporal, aquilo que Sharaku [criador de gravuras do século XVIII] fazia com a simultaneidade, ao provocarmos uma desproporção monstruosa entre as partes de um acontecimento que vai fluindo normalmente e que é de repente desmembrado […] quando efetuamos, através da montagem, a desintegração do acontecimento em diversos planos? (EISENSTEIN, 1929/1977, p.172, [inserção minha]).

Ele articula o método ideográfico (montagem) ao desmembramento, à desintegração, à desproporção. Faz, ainda, uma diferenciação da escola que concebe a montagem como “um pedaço argamassado a outro pedaço”, como tijolos, em um encadeamento de pedaços, como cadeias, “tijolos postos em séries para expor uma ideia”, e sua própria concepção de montagem como COLISÃO: “Concepção segundo a qual, da colisão de dois fatores determinantes, surge um conceito […] de acordo com meu ponto de vista, o encadeamento é apenas um caso especial, possível” (Ibid., p.177)

Portanto: montagem é conflito, colisão. E há uma ênfase posta no que não é cadeia. A montagem seria, antes, uma anti-cadeia que provoca esfacelamentos dos quadros estabelecidos ou esperados.

 Tarkovski (2010) em seu livro: esculpir o tempo, refere-se ao fazer do cineasta como associações poéticas e cita os princípios propostos por Eisenstein:

A chave da poesia do cinema:

Todos nós conhecemos o gênero tradicional da poesia japonesa, o haicai. Eisenstein citou alguns exemplos:

A lua brilha fria;

Perto do velho mosteiro

Um lobo uiva.

Eisenstein via nesses tercetos o modelo de como a combinação de três elementos separados é capaz de criar algo que é diferente de cada um deles. Uma vez que esse princípio já estava no haicai, é evidente que não pertence exclusivamente ao cinema (TARKOVSKI, 2010, p.76)

Sobre esta cinematografia, Haroldo de Campos comenta que para Eisenstein, “juntam-se dois pictogramas para sugerir uma nova relação, não presente nos meros elementos isolados” (CAMPOS, 1977, p.41).

Interessante pontuarmos aqui que esse criar algo diferente, inédito, consubstancializa o que Lacan insiste sobre o sentido: que este (o sentido) decante (LACAN, 1973-74, inédito).

Campos propõe, então, que o pictograma, nos desdobramentos do signo, seja um ícone:

Desde logo o pictograma é decididamente um ícone: é uma pintura que, em virtude de suas próprias características, se relaciona, de algum modo, por similaridade, com o real, embora essa qualidade representativa possa não decorrer de imitação servil, mas de diferenciada configuração de relações (CAMPOS, 1977, p.40).

A colisão pode ser relativa ao ícone (que se dá por semelhança não servil ao objeto): uma anti-cadeia que surge desmembrando, decantando. O que surge é desproporcional. Assim como o ideograma, a montagem concebida desse modo, pode fazer ressoar outra coisa. Não haveria aqui, sobremaneira, um forçar o indiscernível (vazio)? Não seria, então, a colisão, um forçamento?

Relendo um trecho de Badiou (1996, p.335), diríamos que o falasser, produto do Discurso Analítico, passa à força no momento em que o indiscernível (vazio), convocado, revela a des-medida do indecidível (suspensão, decantamento). Des-medida feminizante que indecide o sentido, em uma justa interrupção das feéricas produções neuróticas. Ou: entre (S1)-falasser-gozo e o duplo sentido (em escoamento) do saber sobre a verdade não-toda (S2), um forçamento-colisão pode fazer ressoar outra coisa: poesia.

Seguindo com a conversa com o campo psicanalítico, podemos nos perguntar: não seria o saber (S2) posto no lugar da meia-verdade do discurso analítico um saber-poético? Um saber que é saber fazer com o duplo sentido, por ser mesmo duplo sentido. Afinal, operar com as figuras de som recorrentes, fazer hesitar por aí o sentido, tornar o referente ambíguo (menções à função poética postulada por Jakobson), estas são operações possíveis sobre o significante e o gozo.

Haroldo de Campos aponta, nessa direção, o quanto a queda da função referencial faz importar descobrir, por exemplo, a palavra “astro” no adjetivo “desastrado” ou mesmo no substantivo “desastre” (CAMPOS, 1977, p.39). Esses encontros são muito importantes para um poeta. Esses encontros não são menos importantes para um psicanalista. Por aí se decanta, escoa-se, contradiz-se o sentido.

Quando Lacan fala sobre a poesia chinesa, ele destaca a escrita e o cantarolar, o falar cantando. Há o grafema e o tonema (a modulação da voz: no som e no tempo) neste colocar o corpo que é um ideograma.  Cantarolar, modular… o tom, o som, o silêncio… as ressonâncias do corpo…

Encontramos em Duplo Canto e outros poemas, de François Cheng (s.d.), uma afirmação segundo a qual a poesia, na tradição poética chinesa, “suscita a ressonância do não-dito, faz viver uma experiência de vacuidade” (p.19) Além disso, sobre o ideograma, ele afirma que não se trata de marcas arbitrárias nem de sinais que visam copiar as coisas, mas antes procura “figurá-las por traços essenciais” (p.31). Pelo fato do ideograma ser monossilábico e invariável, isso se lhe confere “uma grande mobilidade quanto a possibilidade de se combinar com outros ideogramas” (p.32).

O laconismo e sua redução ao mínimo que transmite algo do Real estão aqui mencionados.

E Lacan ainda articula a escrita chinesa (segundo ele, menos imaginária que as nossas indo-européias) ao nó borromeano. Afirma, textualmente, que “é sobre o nó que elas [as línguas chinesas] trabalham” (LACAN, aula de 11 de dezembro de 1973, inédito [colchetes meus]). Ou seja, trabalham em outra dimensão espacial, não na consistência de um espaço geométrico euclidiano. A figuração chinesa, grafemática, permite combinações que fazem nó. Recordemos, aqui: para que a nodalidade se opere é necessário o vazio, a experiência de vacuidade sublinhada por Cheng.

Enfim, entre grafemas, tonemas e fonemas, é possível que um analista permita o poema (não sem a lógica) nodal (modal). Em escape de tonel (por Lacan) ou no esfacelamento quadrilátero da montagem cinematográfica (por Eisenstein), que se cante mais, sustentação do silêncio. Decantamento de sentido.

Referências Bibliográficas:

BADIOU, A. O Ser e o Evento. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

CAMPOS, H. Ideograma. Lógica, poética, linguagem. São Paulo: Cultrix, 1977.

CHENG, F. Duplo canto e outros poemas. Cotia: Ateliê Editorial, s.d..

EISENSTEIN, S. (1929). O princípio cinematográfico e o ideograma. In: CAMPOS, H. (org.), Ideograma. Lógica, poética, linguagem. São Paulo: Cultrix, 1977.

LACAN, J. (1973-74). O Seminário, livro 21: Les non-dupeserrent. Inédito.

LACAN, J. (1976-77). O Seminário, livro 24:L’insu que sait de l’une-bévues’aile à mourre. Inédito.

TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Sobre a Autora:

Ana Paula Gianesi é psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo.

E-mail: anapaulagianesi@yahoo.com.br