Nesse texto, quero apresentar a maneira como Michel Foucault enxerga, principalmente em As palavras e as coisas, o papel da psicanálise para o que ele denominou de “a morte do homem”. O livro é um grande tratado a respeito das condições de possibilidade tanto do surgimento quanto da derrocada da imagem do homem tal qual a modernidade haveria pensado, e a psicanálise teria um papel atuante fundamental nesse segundo movimento.

Em certo momento do texto, Foucault irá pensar a constituição de três duplos constitutivos da imagem do homem: empírico e transcendental (o homem é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhecimento moderno); o mesmo e o outro (ao buscar sua origem histórica, seu ponto fundamental de identidade, o homem se depara com outros objetos que não ele); e o cogito e o impensado, que irei analisar com maior atenção. Foucault se coloca num momento em que a figura do cogito não mais apresenta a imediata apreensão do ser do sujeito através da sua consciência de poder pensar-se como pensante, tal como seria a intenção original de Descartes. Isso porque estaríamos vivendo um momento em que o cogito não mais realizaria a ligação entre o “eu penso” com o “eu sou”, pois as próprias categorias do ser e do pensar estariam completamente subvertidas pelos rumos que o desgaste da episteme moderna produzira, através dos conceitos de linguagem, trabalho e vida:

Posso eu dizer, com efeito, que sou essa linguagem que falo e na qual meu pensamento desliza a ponto de nela encontrar o sistema de todas as suas possibilidades próprias, mas que, no entanto, só existe sob o peso de sedimentações que ele jamais será capaz de atualizar inteiramente? Posso eu dizer que sou este trabalho que faço com minhas mãos, mas que me escapa não somente quando o concluo, mas antes mesmo de o haver encetado? Posso eu dizer que sou essa vida que sinto no fundo de mim, mas que me envolve tanto pelo tempo formidável que ela impulsiona consigo e que me leva por um instante sob sua crista, quanto pelo iminente que me prescreve minha sorte? (FOUCAULT, 2010, 447-448).

Aqui, o que está em jogo diz respeito ao fato de que o homem não consegue se olhar de forma clara e translúcida: “o homem é também o lugar do desconhecimento” (op. cit., p. 445) – desconhecimento da sua origem, da sua identidade, da sua substância. Atravessado pela linguagem, pelo trabalho e pela vida, há sempre no homem uma dimensão fechada ao pensamento. Pois Foucault se pergunta como poderia o homem pensar o que não pensa, habitar o que lhe escapa, ser a vida cuja rede de pulsações transbordam sua experiência, ser o trabalho cuja exigência e lei lhe impõe um estranho rigor, e ser o sujeito dessa linguagem que se formou sem ele, cujo sistema lhe escapa, mas onde, mesmo assim, é obrigado a alojar a sua fala e pensamento (op. cit.). O impensado aparece como esse duplo que acompanha a consciência do homem, como um desconhecimento primeiro que o habita, descoberto pelo próprio pensamento, que precisou passar por fora de si até descobrir, ao seu lado, o não-pensado: o impensado é, em relação ao homem, “o Outro, fraterno e gêmeo, nascido não dele, nem nele, mas ao lado e ao mesmo tempo, numa idêntica novidade, numa dualidade sem apelo” (op. cit., p. 450). Assim,

Todo pensamento moderno é atravessado pela lei de pensar o impensado – de refletir, na forma do Para-si, os conteúdos do Em-si, de desalienar o homem reconciliando-o com sua própria essência, de explicitar o horizonte que dá às experiências seu pano de fundo de evidência imediata e desarmada, de levantar o véu do Inconsciente, de absorver-se no seu silencia ou de pôr-se à escuta de seu murmúrio indefinido (op. cit., p. 451).

Ora, não é de se estranhar que a ideia do impensado, tal como a apresentamos, seja associada junto à psicanálise. Nos interessa, aqui, o modo como a psicanálise e seu conceito central de inconsciente lidariam, segundo Foucault, com o homem, nesta espécie de pequena arqueologia do freudismo que se desenha ao final de seu livro. Pois, ao contrário das ciências humanas, que “só se dirigem ao inconsciente virando-lhe as costas, esperando que ele se desvele à medida que se faz, como que por recuos, a análise da consciência” (FOUCAULT, 2010, p. 518), a psicanálise aponta diretamente para ele, e não no sentido de iluminá-lo, descobrir o que há, nele, de oculto à consciência, mas sim para lidar com “o que aí está e se furta, que existe com a solidez muda de uma coisa, de um texto fechado sobre si mesmo, ou de uma lacuna branca num texto visível, e que assim se defende” (op. cit.). Desse modo, a psicanálise iria em direção contrária às humanísticas: enquanto estas partem da naturalização da imagem do homem, a psicanálise faria o caminho contrário, de modo a transpor a representação para além da identidade e da finitude, numa região onde, suspensa essa representação, podemos encontrar a Morte, o Desejo e a linguagem que se faz Lei:

Não é a morte aquilo a partir de que o saber em geral é possível – de sorte que tal ela seria, do lado da psicanálise, a figura desta reduplicação empírico-transcendental que caracteriza na finitude o modo de ser do homem? Não é o desejo o que permanece sempre impensado no coração do pensamento? E esta Lei-Linguagem (ao mesmo tempo fala e sistema da fala) que a psicanálise se esforça por fazer falar, não é aquilo em que todo significação assume uma origem mais longínqua que ela mesma, mas aquilo cujo retorno é prometido no ato mesmo da análise? (op. cit., p. 519).

No além da representação, morte, desejo e linguagem em suas formas nuas.

Para alcançar esse lugar, a psicanálise precisa se colocar como uma experiência trágica: “o enunciado da categoria do inconsciente seria o signo maior dessa dimensão trágica que esta [a psicanálise] perpassa, justamente porque materializaria o descentramento do sujeito” (BIRMAN, 2000, p. 51). Para determinar o sentido dessa dimensão trágica, precisaremos entrar na questão da ênfase dada à linguagem por Foucault, a partir de sua potencialidade disruptiva. Em O pensamento do exterior (texto escrito dentro do quadro teórico de As palavras e as coisas), Foucault coloca lado a lado duas afirmações que teriam um caráter trágico para as suas respectivas épocas: o “Minto” dos antigos e o “Falo” dos modernos. Quanto ao último, toda a dificuldade surge quando se percebe que ao dizer “falo”, o sujeito da oração se utiliza do discurso tanto como objeto quanto como suporte. E que, ao se calar, o discurso desvanece, da mesma maneira como se fazia ausente antes do “falo”. Com isso, “toda a possibilidade da linguagem se encontra aqui dissipada pela transitividade em que a linguagem se produz” (FOUCAULT, 1990, p. 13). A literatura atua nesse vazio deixado pelo discurso, pois a palavra literária se desenvolve lá onde a linguagem distancia-se de si mesma, coloca-se fora de si e põe em evidência o seu ser. Desse modo, “o sujeito da literatura (aquele que fala dela e aquele do qual ela fala) não seria tanto a linguagem na sua positividade quanto o vazio em que se encontra seu espaço quando se enuncia na nudez do ‘falo’” (op. cit., p. 14). É esse vazio que nos interessa, já que, desse modo, o “falo” seria oposto ao “penso” – este conduz ao eu, enquanto aquele abre um vazio no lugar do enunciador:

A transição para uma linguagem em que o sujeito está excluído, o ocaso de uma incompatibilidade, talvez sem recursos, entre a aparição da linguagem em seu ser e a consciência de si em sua identidade é hoje em dia uma experiência que se anuncia em diferentes pontos de vista da cultura: no mínimo gesto de escrever como nas tentativas de formalizar a linguagem, nos estudos dos mitos e na psicanálise, na busca, inclusive, desse Logos que é algo assim como a certidão de nascimento de toda a razão ocidental (op. cit., p. 19).

Citação explícita a respeito do que Foucault entende como objetivo da psicanálise: a dissolução do sujeito. Em outro opúsculo do autor, Nietzsche, Freud & Marx, encontramos na “interpretação” o método fundamental de Freud para alcançar tal resultado. Foucault afirma que os três autores em questão não deram um sentido novo aos símbolos, mas modificaram a sua natureza e, principalmente, a forma de interpretá-los. Mas o mais interessante, aqui, é notar como Foucault entende que, tanto em Nietzsche quanto em Freud, quanto mais se avança na interpretação, mais se aponta para o seu fim e, especialmente, para o fim do intérprete. Fim que aparece como um momento de ruptura ligado à loucura: “esta experiência da loucura seria a sanção contra um movimento de interpretação que se avizinhava do infinito do seu centro, porém que se derruba, calcinada” (op. cit., p. 22). Tal caráter infinito da interpretação aponta para a circularidade do movimento onde a interpretação é remetida para o próprio intérprete, que, por sua vez, remete para a interpretação. Para Foucault, estamos “condenados a ser interpretados ao mesmo tempo em que interpretamos” (op. cit., p. 35). Pela infinitude do movimento interpretativo, “as técnicas de interpretação fornecem uma rede inesgotável de possibilidades para o devir humano” (MARIGUELA, 1995, p. 115). Desse modo,

Em meio a uma certa perplexidade, o autor admite que o grande problema é que esse mesmo sapiens que se descolou da biologia para revolucionar o mundo a partir da sua capacidade ficcional, é um completo ignorante quando se trata de lidar com seu desejo. Não sabemos para onde caminha a humanidade e pior, não sabemos para onde queremos que ela caminhe. E finaliza:

“É por ser uma prática da interpretação que lida com a finitude, e por lidar com a linguagem enquanto lugar de descentramento do sujeito que a psicanálise não pode criar uma teoria geral do homem, muito menos se colocar como uma das ciências humanas. A idéia da psicanálise como contraciência não pode ser separada da maneira como ela lida com essa figura que é o homem. Tanto a psicanálise, pela relação singular da transferência na interpretação, quanto a etnologia, pela análise da relação da razão ocidental com outras culturas, se dirigem a um saber positivo que vai para fora do homem. Desse modo, ambas “dissolvem o homem. Não que se trate de reencontrá-lo melhor, mais puro e como que liberado; mas, sim, porque elas remontam em direção ao que fomenta sua positividade” (FOUCAULT, 2010, p. 525). Nesse sentido, psicanálise e etnologia são contraciências porque “se assumem no contrafluxo, reconduzem-nas [as outras ciências] a seu suporte epistemológico e não cessam de ‘desfazer’ esse homem que, nas ciências humanas, faz e refaz a sua positividade” (op. cit.).

Não é à toa que Foucault vê na psicose o encaminhamento de toda a análise. Como se a psicanálise, indo além do homem, apontasse para o que há de outro, de alteridade em relação ao homem: a loucura, “em sua forma presente, a loucura tal como se dá à experiência moderna, como sua verdade e sua alteridade” (op. cit., p. 520). É na loucura que aparece de modo manifesto as formas da finitude caminhando indefinidamente e infinitamente na linguagem. Nela, encontramos o radical da psicanálise: para Foucault, Freud teria deslocado a experiência da loucura para a região “das linguagens implicando-se nelas próprias, quer dizer, enunciando em seu enunciado a língua na qual elas o enunciam” (2006, p. 216). Fato que, por si só, deveria ter bastado para proteger a obra de Freud “de todas as interpretações psicologizantes de que nosso meio século a recobriu, em nome (irrisório) das ‘ciências humanas’ e de sua unidade assexuada” (op. cit.) Para Foucault, Freud não teria feito somente a loucura falar, mas “ele a dessecou; fez remontar as palavras até sua fonte – até essa região branca da auto-implicação onde nada é dito” (op. cit., p. 217). É assim, pela dissolução do sujeito, pelo encaminhamento em direção ao outro do homem – a loucura -, que a psicanálise tem um lugar cativo nas páginas foucaultianas a respeito da morte do homem.

 

Bibliografia:

BIRMAN, Joel. Entre cuidado de si e saber de si: sobre Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

__________________. Ditos e escritos I – Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

__________________. Nietzsche, Freud & Marx; Theatrum Philosoficum. São Paulo: Princípio Editora, 1997.

__________________. O pensamento do exterior. São Paulo: Princípio Editora, 1990.

LOURENÇO, Eduardo. Michel Foucault ou o fim do humanismo. In: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1966.

MARIGUELA, Márcio. A psicanálise na arqueologia das ciências humanas. In: MARIGUELA, Márcio (org). Foucault e a destruição das evidências. São Paulo: Unesp, 1995.

 

Sobre o Autor:

Luiz Fernando Botto Garcia é psicanalista, mestre em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. E-mail:

E-mail: lfbotto@gmail.com