Primeiro não era o verbo, era a sombra. A sombra não vem do verbo que ao refletir a luz em sua magnitude, produz um resto atrás de si. A sombra é primária e assombra o próprio verbo em sua carne. Ele não sabia disso, assim, nesses termos, mas já o pressentia. Porém, como pressentimento é diferente de saber, a sombra se tornava um mistério e uma assombração, causando desejo de saber e inibição.

O feminino como o que suporta a sombra é a causa de sua busca, que parte do corpo próprio, passa pelo corpo do outro, pelo saber médico até chegar à psicanálise.

Na contingência de um encontro, ouve uma frase daquele que virá a ser seu psicanalista. Frase que não é dirigida a ele, mas da qual se faz destinatário: “Antes eu me colocava como homem e era uma mulherzinha. Agora me coloco como mulher e sou muito mais homem”.

A primeira parte deste silogismo lacaniano remetia à lógica fálica conhecida de todos os neuróticos obsessivos, ou seja, o recurso ao falo não dá conta da posição de objeto do Outro, a mulherzinha do Outro. Mas e a segunda, do que se trataria? Frase que, sendo ao mesmo tempo enigma e solução, trouxe um sentimento de encontro tão intenso que ele pensa, após uma forte desrealização: “se eu morrer agora, tudo bem”. Um verso de Fernando Pessoa se impôs: “Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade/ Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer”¹.

DEAD MEN*

A vinheta clínica acima enseja o seguinte questionamento: Com a queda contemporânea do nome-do-pai e seus sucedâneos como garantidores da posição masculina no mundo, trata-se na análise de um homem de responder a seguinte questão: Como situar o falo a partir do não-todo? Como a experiência da lógica do não-todo, experiência que obviamente não é exclusiva das mulheres, pode se colocar para um homem em análise como o recurso apropriado para uma abordagem do próprio recurso fálico, assim como do feminino, em si e no Outro?

Delinearei um caminho para pensar essa questão a partir da análise, por mais paradoxal que possa parecer, de um dos ícones da masculinidade no século 20, os heróis dos filmes de velho oeste, os Dead men, como são denominados esses personagens por Francisco Bosco, em sua análise desse gênero de filmes, denominado por ele como “gênero do Real” ².

Esses personagens que entraram para o imaginário popular como ícones da masculinidade se singularizam exatamente por não estarem de todo submetidos à lógica fálica, da qual eles serão os tais ícones. O imaginário popular os faz ícones exatamente por tomá-los como encarnação da exceção (sendo a exceção uma instância fundamental da lógica fálica). Mas, o que irei desenvolver aqui aponta para o fato de que o que eles sustentam é uma posição além do falo, de não-todo.

Este tipo de personagem tem como marca fundamental a relação com a morte, que em algum ponto da sua biografia se inscreveu como marca indelével, a qual o acompanha por suas andanças, sempre solitárias, e por onde passam sustentam uma relação com a noção de justiça que passa ao largo da dialética fálica, localizando no seio das questões morais da sociedade o desafio ético do sujeito.

Abordar estes personagens a partir da lógica do não-todo, aponta para o fato de que, como nos ensina Lacan, para um homem a questão sobre o feminino passa quase sempre por uma questão com a morte. Ou melhor, a inclusão do feminino, do não fálico, na experiência subjetiva de um homem, tem a ver com a inclusão da morte em sua vida.

No filme Era uma vez no oeste, de Sergio Leoni, encontramos Harmônica, o personagem principal encarnado por Charles Bronson, que em sua adolescência, foi submetido a uma cena de intrusão radical da morte em sua vida: é colocado em sua boca uma harmônica (gaita) e ele é obrigado a sustentar sobre os ombros o irmão que tem o pescoço preso a uma corda. Assim, quando ele se cansar e cair, o irmão será enforcado. O irmão, para livrá-lo daquele encargo, o empurra com os pés e assume a responsabilidade da própria morte. Ele cai no chão e da harmônica em sua boca emite-se um som, o qual será o único som que ele irá tirar de sua gaita, que o acompanhará pelo resto da vida.

Esse som marca sua filiação à morte, o seu ordálio, termo caro a Lacan para referir-se à relação do significante com o corpo, presente no seminário 23: O sinthoma³. Poderíamos, talvez, dizer tratar-se da única nota de sua lalangue – uma lalangue de um só som, criadora de um silêncio potente e que permeia todo o filme. Ausência produzida por uma presença que é puro traço, obedecendo a uma lógica própria ao não-todo. Segundo Lacan: “A ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir a ausência – como o grito não se perfila sobre o fundo de silêncio, mas, ao contrário, o faz surgir como silêncio” ⁴.

Portador dessa filiação ao Real ele caminha pelo mundo, sempre extraterritorial por onde passa, o que lhe impossibilita qualquer laço, em busca de uma justiça que se exprime por uma ética própria não compartilhada, que acaba necessariamente em contraposição aos ideais da cidade e do progresso (fálico).

O que disso redobra sobre o que aparentemente tem a ver com o falo é de especial interesse neste trabalho. A questão da técnica, da rapidez ao sacar a arma, da frieza frente aos mais incríveis perigos de morte, do suportar os mais difíceis desafios ao corpo ou mesmo as diversas humilhações, deve ser vista a partir da lógica do não-todo e não de um super-falo.

Não se tratam de super-heróis com poderes especiais sobre humanos (sobre fálicos). Mas, ao contrário, estão não-todo submetidos à lógica fálica, eles já estão mortos, são seres-na-morte. Citando Bosco: “ele é, muito mais radicalmente, um ser-na-morte, um ser que habita o acontecimento da morte como trauma e iminência efetiva, indo ao seu encontro a cada vez que saca a arma” ⁵. Assim, são seres que co-habitam com o Real.

Assumir aquilo que foi incluído no trauma como iminência efetiva é o que esses personagens nos apresentam e parece ser a perfeita alegoria para a frase em causa: “colocar-se como mulher e ser muito mais homem”, sendo a abertura para a possibilidade do ato, com a consequente inclusão do Real como sem lei, como encontro, uma consequência fundamental.

Podemos dizer, então, que o deslocamento em relação à lógica fálica, para um homem, passa por isso que Lacan apresenta como: “limite extático do “tu és isto”, em que se revela, para ele, seu destino mortal”⁶, sendo “mulher” uma nomeação possível para esse limite. Permanecendo na referência a personagens chave da história do cinema, trata-se do avesso do encontro com a femme fatale, uma vez que nesse encontro a morte se inscreve como consequência trágica. Ao contrário, temos aqui um encontro em que o feminino, ou a morte, se inscrevem antes como causalidade, que proporei chamar de femme mortale.

Então, para um homem, após esse encontro, a partir da possibilidade de lidar com o falo a partir do não-todo, a questão de interesse se desloca para: como se dá a reintrodução disso, dessa nova relação da sombra com o verbo, na trama ficcional da vida? Trata-se de uma mudança do roteiro da história ou do próprio gênero literário em que ela é contada (vivida)?

 

Bibliografia:

PESSOA F. Tabacaria. In: Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 9.

BOSCO, F. E livre seja este infortúnio. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2010, p. 114.

LACAN, J. (1975-1976) O seminário: Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 20.

LACAN, J. (1964) O seminário: Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 31.

BOSCO, F. E livre seja este infortúnio. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2010, p. 121.

LAURENT, E. Sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007, p. 166.

 

Nota:

*As idéias desenvolvidas aqui se baseiam amplamente no capítulo intitulado “Dead men” do livro “E livre seja este infortúnio”, de Francisco Bosco, Azougue Editorial, 2010.

 

Sobre o Autor:

Fernando Prota, psiquiatra, psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. Professor do Instituto Clin-a: Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade. Atua em Ribeirão Preto/SP.

email: f_prota@yahoo.com.br