Há mais de treze anos, o Instituto Fazendo História acompanha e apoia o trabalho de serviços de acolhimento em São Paulo e em vários estados brasileiros, testemunhando as profundas mudanças na realidade do acolhimento institucional no país e os desafios que ainda se apresentam.

A despeito de importantes conquistas, as práticas atuais no acolhimento ainda carregam traços da história recente da institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil. Há poucas décadas, a lógica do “cuidado” era pautada frequentemente por ações higienistas, de clausura e de ruptura do convívio da criança e do adolescente com sua família. Eles eram os “menores órfãos”, ainda que a imensa maioria tivesse familiares.

A promulgação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) em 1990, e de uma série de instrumentos normativos posteriores, redefiniu os parâmetros para o acolhimento institucional como medida de proteção para crianças e adolescentes, quando seus direitos são ameaçados ou violados. De caráter excepcional e provisório, o serviço de acolhimento deve ser um lugar de cuidado durante esse momento transitório até o retorno à família de origem ou, não sendo este possível, para uma família substituta, buscando assegurar sempre a preservação de vínculos afetivos.

Dessa forma, as famílias de origem passaram a ser reconhecidas em sua existência e ter maior visibilidade. Mas em que lugar são vistas e colocadas famílias em situação de vulnerabilidade que perdem a guarda de seus filhos? E o que permanece inaudível no silêncio e nos gritos delas?

A partir de algumas vinhetas de situações reais, proponho pensar no olhar e na voz, no que é visto e naquilo que não se escuta, nem se faz escutar, no trabalho com famílias cujos filhos são encaminhados para a medida de acolhimento.

Escolho aqui um recorte de um universo de histórias que todos os dias atravessam o fazer técnico desse trabalho que desenvolvo no Instituto Fazendo História, dando foco à palavra ABANDONO, assim mesmo em maiúsculas, que muitas vezes marca como um carimbo a trajetória de bebês, mães e pais, desde o primeiro momento de suas existências. Refiro-me à forma como nos prontuários de hospitais é recorrentemente designada a situação de recém-nascidos encaminhados para o acolhimento. Mães e pais reificados e indistintos em rótulos aprisionadores: morador de rua, craqueiro, negligente, traduzidos nessa única palavra que justifica o acolhimento dos bebês – ABANDONO – como se dela fosse possível deduzir todas as demais em uma narrativa única, totalizante e totalitária. Compartilho aqui algumas dessas histórias.

Uma mãe, vivendo em situação de rua, chega ao hospital para dar à luz, carregando com ela uma pequena bolsa cuidadosamente organizada com um enxoval cor-de-rosa. O sonho rosado de ser mãe, embalar e amamentar seu bebê lhe coube ali naquele instante quase efêmero e fugidio. No dia seguinte, essa mãe tem alta, mas não lhe é dado o direito de levar consigo seu filho. A justificativa: não há na rua condições adequadas para um bebê. Para ser mãe é preciso ter uma moradia. A mãe argumenta e, por fim, garante: “vou dar um jeito e volto para buscar meu bebê”. Deixa o hospital e é pega em uma tentativa de assalto. Ela vai presa, seu bebê fica no hospital com o prontuário em que se lê o motivo do acolhimento: ABANDONO.

Outra mãe, vivendo em situação de rua, chega ao hospital para dar à luz, carregando com ela uma pequena mala, contendo seus pertences. Com evidente funcionamento psicótico, após o parto essa mãe fica muito perturbada e não consegue compreender ao certo o que faz ali. Entra em uma crise e, gritando por sua mala acaba sedada e contida. “A mala”… gritava ela, “amá-la” soava seu grito inaudível, enquanto a menina nascida seguia outro destino. A bebê tem alta antes da mãe e é encaminhada com o prontuário em que se lê o motivo do acolhimento: ABANDONO.

Uma terceira mãe, vivendo em situação de rua, chega ao hospital para dar à luz a esse que seria seu sétimo filho, embora não tivesse mais a guarda de nenhum deles. Depois da alta, a mãe explica que deixaria o bebê aos cuidados do hospital porque “na rua é muito frio…”. Visitava o filho diariamente, até se certificar de que “ele ficaria bem e que seria bem cuidado”. Com uma condição precária para cuidar de si mesma e de qualquer um de seus filhos, era uma mulher atormentada pela ideia de uma maternidade que se desmaterializava nos bebês desaparecidos ao saírem de seu ventre. Seguia assim engravidando, buscando na repetição um sentido fugidio para uma maternidade impossível. O bebê é, por fim, encaminhado com o prontuário em que se lê o motivo do acolhimento: ABANDONO.

E uma quarta mãe, vivendo em situação de rua na chamada cracolândia, chega ao hospital e dá à luz. No dia seguinte, ela retorna ao “fluxo”, buscando um cachimbo, talvez esquecida do filho. Seu companheiro, também usuário, afirma para a equipe de enfermagem ser o pai da criança, segue visitando o bebê no hospital e insistindo no desejo de acompanhar o paradeiro do filho. Apesar da presença dele, no registro de nascimento do bebê consta “pai desconhecido”, afinal, justifica a funcionária do cartório, “a paternidade dele não é garantida”. A avó paterna do bebê não consegue a guarda do neto pela dificuldade de comprovar o parentesco sem um documento que a indique. O bebê é encaminhado com o prontuário em que se lê o motivo do acolhimento: ABANDONO.

A forma recorrente com que os prontuários reduzem tantas e tão diferentes histórias a uma única palavra inquieta e produz questões: o que faz com que essas pessoas se tornem invisíveis? O que nelas cala e faz calar, provocando o apagamento de suas existências, desejos, anseios e narrativas? O “ABANDONO” como história única nomeia o bebê com um signo que, enrijecido, pode reger sua existência. De forma análoga, os pais desses bebês também são marcados pela identidade do abandonado, à medida que o apagamento de suas histórias denuncia o quanto essas pessoas estão entregues à própria sorte. A elas é atribuído um lugar sem potência, sem mobilidade ou possibilidade, ao que, em geral, respondem sintomaticamente mantendo-se nessa condição.

Abandono, do latim ad (ao) e bandon (poder ou controle), sugere em sua etimologia uma condição de submissão ao poder. O “abandonado” refere-se ao lugar de sujeição ao Outro, a uma exigência, tirânica, radical e puritana. Mas, essa mesma etimologia aponta, em sentido oposto, uma possível liberdade: o abandonado pode ser banido por quem o controla e, talvez assim possa (re)encontrar as rédeas do próprio destino. Por não ter mais nada a perder, encontra um tipo de liberdade que o torna diferente, estrangeiro, estranho. Em sua estranheza, o abandonado incomoda e fascina os que o assistem.

O estrangeiro está no mundo de forma própria, diferente. Freud aponta, em “Tabu da virgindade” (Freud, 1918), o horror do confronto com o outro sexo, como marca do primeiro encontro com o outro diferente, aquele que evoca a ameaça e o ódio. Um ódio fundante do sexismo, do racismo, da xenofobia e de tantas outras diferenças seja de clã, ideologia ou religião (Koltai, 2000). Penso aqui no ódio ao morador de rua, sujo, crackeiro, a esses pais e mães, marcados pela identidade do abandono e da negligência que remete à condição de desamparo, constitutiva do humano. O insuportável emerge no momento em que esse diferente se aproxima demais e impõe suas “excentricidades”, a forma própria de relação que mantém com seu gozo.

Não há como suportar a forma de gozo que exala dessa outra condição de existência, do gozo atribuído ao estrangeiro, do gozo sem limites: Um parasita… que vive na rua sem fazer nada, que se droga o dia todo, enquanto eu trabalho e pago impostos!… talvez alguém diga, se referindo a esse “ladrão de gozo” (Koltai, 2000).

… vejo no Outro um gozo que provoca meu ódio, porque só posso ver nele alguém que me priva de algo e não um semelhante com quem possa me identificar. O ódio social nasce dessa suposição de um saber sobre o gozo do Outro. (Julien, 1996, p.58)

Dessa forma, não há no encontro com esse estrangeiro a possibilidade de identificação, apenas de atribuição de uma identidade que homogeneíza o diferente em um grupo contra o qual é possível dirigir o ódio. A identidade do abandonado permite enclausurar esses pais e mães “viciados, moradores de rua e negligentes com seus bebês”, em um grupo homogêneo que em sendo distinto, pode supostamente ser mantido distante.

Pensar em um acolhimento como medida de cuidado e proteção implica garantir a esses bebês o direito de acesso a suas histórias em sua complexidade. Ainda que esses pais não tenham condição de garantir os direitos fundamentais de seus filhos e que essas crianças sejam encaminhadas para a família extensa ou substituta, é preciso dar voz a eles. Escutar essas pessoas exige dos profissionais do acolhimento a possibilidade de não se enredar em um sintoma institucional que aprisiona pais e filhos em alguma identidade única. Só assim ambos poderão fazer valer da condição de “abandonado” um caminho libertador, de construção de novas posições subjetivas.

Retomo aqui, entre as vinhetas apresentadas, a história da mãe de sete filhos. Em um longo trabalho da equipe do serviço de acolhimento, de escuta e construção de vínculo, foi possível legitimar o quanto essa mãe sentia-se “abandonada” à própria sorte. A dificuldade de cuidar de si mesma e o desaparecimento dos bebês a deixavam em dúvida sobre se era ou não mãe. Ao ser ouvida, reconheceu seu cuidado de mãe no desejo de que seus filhos estivessem seguros. O encontro de um lugar legitimado para uma maternidade desfez nessa mulher a necessidade de seguir engravidando e da repetição do ser-mãe-abandono, abandonada que era pelos bebês que gerava. A equipe do acolhimento ajudou-a a registrar, em uma carta para o bebê, seu amor por ele e o desejo de que tivesse uma casa e o cuidado de uma boa família. O final do trabalho com ela foi a realização de uma laqueadura (recusada até então) e o acesso ao atendimento psiquiátrico. Até o momento, ela não vive mais na rua. Conseguiu se organizar e resgatar o contato e o convívio com uma das filhas, já adulta. Seu bebê foi encaminhado à adoção, levando com ele a carta da mãe biológica com uma foto para a qual ela se fez bonita. Esse bebê, agora não mais abandonado, pode seguir abonado com uma história finalmente (re)contada.

 

Referências Bibliográficas:

FREUD, S. (1918) Tabu da virgindade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006, vol. XI, p. 179–196.

KOLTAI, C. Política e psicanálise. O estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000, p. 154.

JULIEN, P. O estranho gozo do próximo: ética e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1996, p. 179.

 

Sobre a Autora:

Psicóloga, psicanalista e coordenadora do Programa Com Tato, serviço do Instituto Fazendo História que oferece atendimento psicoterapêutico individual e de família para crianças e adolescentes com vivência de acolhimento.

E-mail: anaraquel@fazendohistoria.org.br