Todo mundo acredita que eu me atenho antes de mais nada ao caráter científico de meu trabalho e que minha meta principal é o tratamento das enfermidades mentais. É um tremendo erro que tem prevalecido durante anos e que tenho sido incapaz de corrigir. Eu sou um cientista por necessidade e não por vocação. Sou, na verdade, por natureza, artista […] e disso existe uma prova irrefutável: em todos os países onde a Psicanálise tem penetrado, tenho sido melhor compreendido e aplicado pelos escritores e artistas que pelos médicos. Meus livros, de fato, se parecem mais a obras de imaginação que a tratados de patologia. […] Eu tenho podido cumprir meu destino por uma via indireta e realizar meu sonho: seguir sendo um homem de letras, mesmo que sob a aparência de um médico. Em todo grande homem de ciência está o gérmen da fantasia; mas nenhum propõe; como eu, traduzir a teorias científicas a inspiração que a Literatura moderna oferece. Na Psicanálise, o senhor encontrará reunidas, mesmo que transformadas em jargão científico, as três grandes escolas literárias do século XIX: Heine, Zola e Mallarmé estão reunidos em minha obra sob o patrocínio de meu velho mestre, Goethe.

Freud, em entrevista concedida ao escritor italiano Giovanni Papini, em Viena, no ano de 1934, recuperada por Andrade[1].

Em minha tese de doutorado, defendida em 2011, abordei um tema relativamente pouco explorado: as dificuldades do psicanalista em sua práxis cotidiana, em sua labuta diária, dentro do consultório conduzindo análises, bem como outros aspectos que circundam essa atividade tão específica, a chamada “profissão impossível”, como Freud já alcunhou. É um desses aspectos que desejo esmiuçar um pouco mais agora nesse texto. Refiro-me ao que podemos explorar da relação entre o psicanalista e os livros, suas leituras e os encontros com os autores em seu percurso de formação.

Afinal, qualquer iniciante em Psicanálise se defronta com essa tarefa, ler a obra de Freud, depois os escritos de outros autores e pesquisadores desse campo efervescente que, aliás, não para de crescer. Berlinck – editor de periódicos científicos, dono de editora especializada em psicanálise e livreiro na época da redação de minha tese – destaca justamente essa vitalidade:

A difusão da cultura psicanalítica ocorre, portanto, além, muito além do divã. […] Hoje a quantidade de autores de artigos e de livros de Psicanálise é da ordem do milhar. O ensino da Psicanálise nas universidades brasileiras, especialmente em programas de pós-graduação de psicologia clínica, produziu um gigantesco aumento do número de artigos e livros. […] Por outro lado, o público leitor aumentou muito, nesses últimos vinte anos, graças também, ao ensino da psicanálise na universidade[2].

Alguns autores já se debruçaram sobre esse tema, pensando especificamente a questão da leitura para o psicanalista, a relação com a palavra do outro, talvez uma relação particular com o texto. Nesse sentido Renato Mezan postula:

A leitura não é deciframento, mas trabalho, ou seja, negação determinada do dado imediato e construção de um novo objeto, que mantém com a ‘matéria-prima’ relações muito complexas. A obra é feita para ser lida por alguém que não é seu autor, e comporta, não uma pluralidade de significados que o deciframento viria desvendar, mas uma potencialidade de suscitar novas significações mediante o trabalho da leitura, e que só vêm se esse trabalho for realizado[3].

Considerar a leitura como um trabalho soa familiar ao psicanalista, pois remete ao essencial trabalho de elaboração presente em uma análise, ou mesmo, como destaca Mezan, a um trabalho que possibilite suscitar novas significações para qualquer elemento no texto. Um bom exemplo, e talvez o mais clássico, encontramos nos escritos de Freud, o autor fundador da psicanálise e influenciador de todos aqueles que a praticam, detentor de algo que Mahony considera vital:

Freud lançou mão de sua rara capacidade linguística para expressar uma visão impressionantemente ampla sobre a vida. Nesse aspecto ele se assemelha a escritores clássicos como Virgílio, Dante, Shakespeare, Cervantes e Goethe. […] Ler esses escritores, inclusive Freud, é aprofundar nossa compreensão acerca de nossa própria humanidade, é realizar nosso potencial, é ampliar nossa consciência sobre a infinita complexidade da história e do papel que nela desempenhamos[4].

Vital porque, além de convidar o leitor a ampliar sua percepção acerca do humano, também o instiga a continuar lendo, prosseguir no desafio que surge, pois “nos escritos de Freud, autor e leitor são, em última análise, indissociáveis da revelação do assunto”[5]. Ao que acrescentaríamos: único porque diz justamente da relação entre autor e leitor, talvez uma das mais impressionantes facetas da transmissão.

E novamente recorro a Manoel Tosta Berlinck, quando destaca que essa seria uma característica peculiar da produção teórica psicanalítica, levantando até mesmo a hipótese de que essa relação – primeiramente entre o autor e o papel e posteriormente entre o texto e leitor – poderia ser considerada uma forma requintada de transferência, pois:

O leitor reconhece, então, um texto psicanalítico pela transferência que ele produz. Mas, aqui, é necessário reconhecer que nem todo leitor é capaz de perceber essas características tão sutis de um texto. O reconhecimento de um texto psicanalítico requer um leitor que tenha uma vivência clínica em que a transferência se fez presente e foi analisada. Ler textos psicanalíticos é, portanto, uma atividade subjetiva equivalente à que ocorre na clínica: o autor transfere no leitor a possibilidade de um espaço favorável à livre associação surpreendente revelando, assim, sua natureza subjetiva e psicoterapêutica[6].

Ao que parece, ler textos psicanalíticos teria então uma dupla função. Uma delas da ordem do conhecimento – de certa maneira didático e razoavelmente análogo aos estudos acadêmicos – cumulativo e mantendo certa coerência. Outra função específica, que pode eventualmente terapeutizar, como propõe Berlinck, pode certamente abalar as certezas, desordenar as concepções prévias, os pseudo-saberes e a confiança estabelecida no que o leitor pôde colher de suas experiências anteriores. E talvez resida aí uma das causas de certo queixume recorrente na fala de colegas psicanalistas que não encontram tempo livre suficiente para se dedicarem à leitura. Afinal, por extensão, Lima lança uma dúvida bastante apropriada: “Quando escutamos um paciente no divã, em que lugar fica a teoria que temos armazenada, ou dialetizada, em nosso conhecimento?”[7].

Ou seja, o ato de ler, além de ser parte indissociável da práxis psicanalítica, também pode servir como um aliado no processo de formação, parte sólida de um dos tripés clássicos, a relação com a teoria da doutrina, com aquilo que já foi escrito e está registrado, ou como já frisei, com a palavra do outro, em alguns casos, depois dos avanços propostos por Lacan, com a palavra do Outro.

Dito de outra forma, da mesma maneira que o psicanalista encontra em sua análise pessoal um alvo para sua transferência, o mesmo – guardando-se as devidas proporções – poderia ocorrer com a palavra do outro/Outro presente nos textos psicanalíticos. Mas, da mesma forma que em um tratamento psicanalítico, é necessário desaprender o que já foi instituído e condicionado na existência, há que se estabelecer outra relação com a palavra, senão a análise não ocorre e, seguindo o raciocínio, há que estabelecer outra forma de relação com a leitura, desaprendendo o que foi aprendido nos anos de escolarização formal, período no qual é bastante comum, senão esperado, um desprendimento entre o prazer original da leitura e sua mecanização nas aulas de línguas, quase sempre com excessiva ênfase nos aspectos gramaticais e formais, tornando-se mais uma tarefa que pode tolher a criatividade, impedindo possíveis metabolizações pessoais do aluno/leitor.

A leitura de um texto psicanalítico deveria provocar surpresas, inquietações, abalos e coisas do gênero, pois obviamente não se trata de algo reconfortante, tranquilizador ou mesmo garantidor.

Isso caminha na contramão da transformação da teoria em teoria da técnica, em algo que possa ser reproduzido em série, bem ao sabor de nossos tempos. O mergulho na teoria do campo psicanalítico deveria ser algo da ordem de uma introspecção pessoal, com tempo para que os efeitos do encontro com a palavra do outro possa afetar e causar efeitos de castração, vitais para um psicanalista. Diferentemente de um acúmulo sem sentido, de uma corrida inexplicável frente a um ideal acadêmico ou, pior ainda, de um exercício de poder dentro de um determinado grupo, como por vezes notamos em dialetos específicos de cada comunidade – no caso das hostes lacanianas, com o indefectível lacanês. Freud lia para encontrar o que há de mais humano nos livros e, com isso, aprimorava sua invenção. Lacan, por sua vez, ao seu estilo, lia para encontrar essa invenção em livros de outros campos. Ambos, ao seu modo, ensinaram aos psicanalistas a importância de uma leitura de-sacralizada da palavra de um autor. Que os psicanalistas aprendam essa lição.

 

Notas:

[1] ANDRADE, M. C. Para que serve a escrita? Freud escreve(-se). Disponível em <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_txt/ale_12/ale12_mca.pdf>. Acesso em 20 fev. 2011, p. 32.

[2] BERLINCK, M. T. A psicanálise além do divã: a cultura psicanalítica em revistas. Por que escrevem os psicanalistas? Pulsional: revista de Psicanálise, São Paulo, n. 183, p. 112-116. set./2005, p. 115.

[3] MEZAN, R. A vingança da esfinge: ensaios de Psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1995(a), p. 68.

[4] MAHONY, P. J. Sobre a definição do discurso de Freud. Tradução de Francisco Inácio Pinkusfeld Bastos. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 104.

[5] MAHONY, P. J. Freud como escritor. Tradução de Elizabeth Saporiti. Rio de Janeiro: Imago, p. 149, grifo nosso.

[6] BERLINCK, M. T. A psicanálise além do divã: a cultura psicanalítica em revistas. Por que escrevem os psicanalistas? Pulsional: revista de Psicanálise, São Paulo, n. 183, p. 112-116. set./2005, p. 114.

[7] LIMA, D. O. Um singular no universal. In: LIMA, D. O. (org.) 60 anos de Psicanálise: dos precursores às perspectivas no final de século. Salvador: Àgalma, 1992, p. 68.

 

Sobre o Autor:

Psicanalista, realizou pós-doutoramento em psicologia social pela PUC-SP, com doutorado em psicologia clínica e mestrado em psicologia escolar, ambos pela USP. Exerceu a docência universitária em nível de graduação e pós-graduação em Psicologia e atualmente se dedica a organizar e participar de eventos no campo ‘psi’ com temas ligados ao cotidiano da clínica psicanalítica, atividade desenvolvida e praticada regularmente por mais de duas décadas em consultório particular.

E-mail: leandroarsantos@uol.com.br