Muitos me indagam para quê serve a psicanálise. Proponho um breve esclarecimento a esse respeito, evidenciando o meu entendimento.

Serve basicamente para apresentar uma pessoa a ela mesma, para aquilo que realmente ela é e não pode deixar de ser, de maneira que possa conviver em harmonia com quem de fato é e de quem nunca poderá se separar de forma realística, não importando o quanto tentar. Caso ela possa vir a respeitar e a considerar o que de fato é, poderá valer-se dos recursos e capacidades que efetivamente dispõe para desenvolver e não continuar dando murros em ponta de faca ao esperar ou exigir de si o que não poderá produzir. Respeitando suas próprias características poderá tirar partido de sua real natureza, desenvolvendo-se a partir dos recursos que realmente dispõe. As perturbações psíquicas e sofrimentos decorrentes estão indissociáveis de um modo de viver que não considera a realidade da pessoa que efetivamente existe, mas que a confunde com aquilo que ela “exige”, inconscientemente, de si ser, das expectativas que imagina que precisaria corresponder de si mesma e dos grupos de que faz parte, sem o quê acredita (em geral inconscientemente) que não seria capaz de sobreviver, muito menos viver. A própria ideia de que alguém pode se moldar conforme às suas próprias expectativas já é em si mesma a evidência de uma disfunção psíquica, pois está baseada na crença da onipotência dos pensamentos, ou seja, a pessoa acredita que pode ser um deus e moldar-se conforme seus próprios desígnios.

Como isso ocorre? Como uma pessoa entra em contato consigo própria. E quais as decorrências disso?

A maioria das pessoas me procura com a ideia de resolver problemas específicos de suas vidas tais como crises matrimoniais, problemas no emprego e outros embaraços práticos que estão sofrendo. Meu primeiro passo é ajudá-las a perceber que o problema maior e verdadeiro estaria na dificuldade que teriam para pensar os problemas da vida com que se defrontam. Dizendo de outra maneira, a maior parte das dificuldades que vivem ao lidar com as adversidades que precisam enfrentar é decorrente de uma falha, ou falta de evolução, de crescimento, das suas capacidades para pensar com clareza. Pensar, aqui, não é sinônimo de raciocinar; é uma condição indissociável da capacidade para tolerar frustrações e as emoções associadas às vivências das frustrações e também à intensidade dos sentimentos – incluindo o amor, o ódio, a inveja, e até mesmo a capacidade para o prazer. Ao contrário do que se costuma imaginar, a pessoa desenvolvida não é aquela que se livrou de frustrações, angústias e adversidades – é a que tem capacidade crescente de suportar essas vivências, o que lhe permite observar com maior clareza os fatos, a realidade, sem distorcê-la para evitar o desconforto e a intensidade das emoções vividas quando de sua apreensão. Pensar implica na possibilidade de negociar com as próprias emoções na vigência delas e de ter suficiente espaço mental para contê-las e observá-las enquanto ocorrem, possibilitando uma captação suficientemente realista dos fatos que estamos vivendo. Caso contrário, a intolerância às emoções associadas aos eventos internos e externos a que somos submetidos na vida cotidiana leva à busca de evasão do contato com elas ou à tentativa alucinatória (irrealizável na prática) de eliminá-las. Como decorrência, há distorção, ou mesmo negação, da percepção dos eventos que se apresentam em nossa experiência e, consequentemente, desenvolve-se a inadequação prática para lidarmos com eles. Se não for possível tolerar as intensidades emocionais relacionadas aos eventos que transcorrem, a tendência é distorcer as percepções desses para não ter contato com as emoções com que eles se associam – dessa forma, a pessoa perde o contato com quem ela de fato é, pois não pode ter contato com aquilo que realmente sente. Assim sendo, são produzidos personagens substitutos para a pessoa real, falsos selves, improvisações, que por serem ficções, imitações, acabam não sendo capazes de lidar de modo mais real com as imposições da vida.

Uma pessoa terá maiores chances de ser bem sucedida nos seus projetos e na solução das dificuldades que enfrentar se tiver uma boa capacidade para pensar. Isto é indissociável de uma razoável condição para suportar situações frustrantes e de conviver com suas próprias emoções, por mais intensas e penosas que possam ser em um dado momento. Mesmo o amor e a experiência do prazer podem ser sentidos como graves ameaças à integridade mental caso não haja condição de se assimilar a intensidade dessas vivências e tampouco condição para elaborá-las, pensá-las, antes de que ações perigosas possam se produzir ou que um colapso ocorra.

O grande psicanalista W. R. Bion sugeriu um modelo em que numa batalha a vitória tenderá para o lado do comandante do batalhão que tiver maior condição de enfrentar situações adversas mantendo desobstruída sua condição para pensar claramente. Em meio a um bombardeio, somos submetidos a fortíssimas emoções, sobretudo sentimentos de ameaça de aniquilamento e perseguição. O comandante que não tolerar o contato com as violentas emoções mobilizadas por este contexto agirá de modo a evadir-se, sem pensar, desta situação, para safar-se do contato com os sentimentos que não suporta. Fará algo como as avestruzes de desenho animado que enfiam a cabeça em um buraco para não ver o perigo e tampouco experimentar as penosas experiências emocionais a ele associados (perdendo o contato consigo mesmo em última instância). O comandante que suportar conviver e negociar com os seus sentimentos, por mais difícil que isto que possa ser, poderá continuar observando o contexto e, eventualmente, perceber as oportunidades que surgirem e aproveitá-las. Para ser competente ele não pode perder o contato com suas emoções, não pode deixar de sentir medo, pois o próprio medo é um indicativo da realidade com que precisa lidar. Tampouco convém ficar submetido ao medo, tomado por ele, levado à paralisia ou a atuações impensadas para não senti-lo. É preciso haver espaço para abrigar e sentir o medo e ao mesmo tempo ter um distanciamento dele, para observá-lo manifestar-se na interioridade do self e permanecer pensando. Numa real situação de batalha é que se irá distinguir a imitação de um comandante capacitado de um que realmente o é. Diante de um oficial galonado, Bion que tomou parte no exército britânico nas duas guerras mundiais, apresentava a questão: estamos diante da evidencia de um oficial real ou da imitação de um? Esse modelo serve para a capacitação de um analista, como mencionarei adiante.

A reação emocional aos eventos internos e externos é fundamental para podermos discernir o que se passa no ambiente, mas é necessário que tenhamos consciência dessas reações emocionais. O tornar consciente o que é inconsciente, lema de Freud para a psicanálise, se ocupa fundamentalmente, na minha prática e conforme os insights de Bion, a tornar consciente as experiências emocionais que o paciente vive e das quais ele não tem noção, ou condição de ter consciência, por considerá-las (inconscientemente) insuportáveis e intoleráveis, por temer, quase sempre sem se dar conta, que o contato com elas leve à desagregação mental. A experiência de análise no consultório permitiria que o analisando viesse a ter contato com suas experiências emocionais que julga insuportáveis (elas podem se manifestar por meio de atuações impensadas nas quais não reconhece os sentimentos envolvidos, ou em sintomas psicossomáticos, por exemplo) na presença e companhia do analista, que deve, por sua vez, ser uma pessoa com suficiente desenvolvimento psíquico-emocional para tolerar a emergência dessas emoções e das turbulências a elas associadas durante as sessões de análise. Quando a análise é real e eficaz, as emoções que até então não tinham encontrado oportunidade se apresentam para escrutínio nas sessões (com toda probabilidade, por melhores que tenham sido os pais de alguém, quando ela vem para análise o faz porque não encontrou neles ou em substitutos, pessoas capazes de tolerar ou conviver com as experiências emocionais mobilizadas pela convivência). As emoções são presentes e reais no consultório do analista. Deixam de ser referidas para se tornarem presentes e manifestas – emerge a turbulência emocional no contato do analisando com o analista. O analista precisa ser como um comandante de um pelotão que tenha condição de permanecer pensando com clareza durante esse bombardeio, ou como um capitão de navio capaz de atravessar oceanos em meio a borrascas. Para isso, o analista precisa ter um contato muito íntimo com suas próprias emoções e seu mundo primitivo.

Shakespeare descreveu algo parecido na peça Henrique V. Nela, o rei da Inglaterra liderando uma pequena tropa, cercado pelo exército francês muito maior, numa situação tremendamente desfavorável, pôde reverter o quadro a seu favor e derrotar os franceses. Tolerando a angústia de aniquilamento iminente, mas sem ser subjugado por ela, o rei e seus comandados puderam pensar claramente e perceber oportunidades que se apresentaram e instrumentá-las, não só para sobreviver, mas também para reverter a situação, ganhando a guerra e capturando o rei da França e a própria França. Essa condição de tolerar as emoções vividas não é uma garantia de sucesso e de sempre encontrar uma saída para situações difíceis, mas é aquela que permite, caso ela se apresente, de ser percebida e instrumentada. Poder aceitar limitações e impotência diante de situações que estão para além de nossas possibilidades pode não mudar um quadro difícil, mas pode evitar que ele se torne muito mais penoso e sofrido ao evitarmos nos punirmos e nos maltratarmos por não termos a condição desejada. Se não evita o sofrimento inexorável, pelo menos evita o desnecessário.

Para alcançar essa condição, o psicanalista deverá ter ele mesmo se submetido à uma análise pessoal muito extensa e profunda, de modo a desenvolver familiaridade com suas próprias experiências emocionais e ter consciência delas quando mobilizadas.

O contato com seus analisandos mobiliza no analista fortes emoções, muito primordiais. Ele precisa ser capaz de senti-las para poder ter uma noção do que ocorre no ambiente, de modo a intuir quais as seriam as experiências emocionais de seus analisandos e a quais realidades psíquicas não sensorialmente observáveis eles estão reagindo. Isso não quer dizer que o analista sente os sentimentos do analisando, mas por meio de sua observação do que se passa diretamente na sua frente no contato com o paciente e de suas (dele, analista) reações emocionais, instrumentado por todo seu preparo obtido em uma longa e extensa formação profissional, inferir, intuir, o mundo psíquico do paciente do qual esse último não tem consciência.

Nesse sentido, ressalto, uma análise real é uma experiência de grande intensidade e turbulência emocional que ocorre nas próprias sessões, na emergência de vivências emocionais primordiais dos pacientes que nunca encontraram lugar para acolhimento e expressão delas, como mencionei acima (isso não implica que haja lugar para atuações dessas emoções de forma explícita, com agressões físicas, verbais ou de natureza sexual atuada concretamente com o analista). Não tendo encontrado espaço para se apresentarem em experiências pregressas, ao se depararem com um analista em que sentem que dispõe de espaço mental para acolhê-las sem se desorganizar ou partir para atuações (contratransferência no sentido dado a esse termo por Freud), podendo pensá-las e transformá-las em representações mentais nunca alcançadas antes, elas acabam se manifestando e têm de ser lidadas no momento atual das sessões. Caso isso ocorra e os analisandos percebam que essas manifestações emocionais são realmente acolhidas e elaboradas nas sessões com o analista (e os pacientes captam, de alguma maneira, quando se trata de acolhimento real ou de imitação de acolhimento do analista – principalmente os mais perturbados), podem vir a desenvolver esse mesmo espaço que encontram na relação com o analista nas suas interioridades, e expandir a capacidade para pensar na vigência de suas experiências emocionais. Só assim poderão ter uma noção mais realista dos fatos com que se deparam e têm de lidar, pois não é possível o contato com a realidade (interna ou externa) sem haver mobilização de reações emocionais.

Neste sentido, uma psicanálise não se propõe a pensar por alguém ou a resolver os problemas apresentados, ao contrário, é um trabalho que ajuda uma pessoa a desenvolver sua capacidade para pensar – de pensar por si mesma, de ter o próprio discernimento, de não precisar seguir rebanhos ou ter de pertencer a rebanhos. Se isto ocorrer, ela própria se verá em condições de lidar com as dificuldades com as quais se defrontar, tendo uma visão mais realista dos fatos e também poderá aproveitar as oportunidades verdadeiras que a vida lhe apresentar na hora em que ocorrem – não na hora que deseja. Isso não implica em se tornar onipotente e prescindir de relações. Porém, a opinião e o ponto de vista dos outros que precisa considerar não precisam ser tomados como verdade a qual precisa se submeter ou afrontar. É algo que pode considerar para reflexão e que pode auxiliá-la a chegar às suas próprias conclusões, sem precisar tornar o outro (tampouco o analista) em autoridade.

Ao desenvolver a condição para entrar em contato com os próprios e genuínos sentimentos e desejos, sentindo que pode pensá-los e não estar a reboque deles ou ser arrebentada mentalmente por eles, o indivíduo pode perceber-se como de fato é, quais as suas características pessoais, aquilo que faz dele ele mesmo e único, mesmo sendo um ser humano comum e com características tão parecidas com as de outros. Ao experimentar-se em seus próprios sentimentos, com os quais poderá ter maior contato, ele verifica o seu jeito próprio de estar no mundo.

O analista auxilia o paciente a se dar conta de que suas reações emocionais, assim como seus desejos e fantasias, não são de sua escolha, nem do analista nem de qualquer outra pessoa ou grupo. O analisando pode vir a se dar conta de que seus desejos e sentimentos são como a cor dos seus olhos, de sua pele, ou o seu genótipo – são aquilo que o fazem ser ele mesmo. Dessa forma, a análise apresenta o paciente a ele mesmo, à pessoa que de fato ele é, e não àquela que gostaria de ser, que imagina ser ou que espera ser – nem tampouco à expectativa de pais, parentes, do grupo de que faz parte e das expectativas morais e sociais. Se puder desenvolver acolhimento e respeito por aquilo que se revelar em análise que é o que faz dele ele mesmo, não obstante o que isso for, poderá vir a casar-se consigo mesmo, alguém de quem não pode efetivamente separar-se e com quem irá conviver até o último de seus instantes. Caso isso ocorra, o paciente poderá sentir que conta e se apóia nos recursos que efetivamente tem e pode desenvolver, e não com os que gostaria de ter, ou deveria ter, com os quais não pode se valer de fato.

Havendo esse casamento consigo mesmo, o indivíduo constitui uma maioria consigo próprio, o que pode permitir com que suporte ser minoria em grupos, pois toda pessoa que desenvolve uma capacidade pensante autônoma inevitavelmente se torna uma minoria e costuma, por conseguinte, enfrentar animosidade por parte da maioria que não evolui nesse sentido. Podendo ser minoria no grupo e contando com a própria companhia e em maioria consigo mesmo, pode desenvolver um caminho que atenda suas reais e genuínas necessidades, produzindo experiências de satisfações e prazeres autênticos, quando exequíveis, no tempo que urge da única vida que efetivamente sabemos que dispomos. Dessa forma, tornar-se-ia alcançável, ou próximo de se realizar, algo que seria viável nomear como a felicidade possível.

 

Sobre o Autor:

Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), Psicólogo pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Doutor em Psicologia Social e Livre Docente em Psicologia Clínica pela USP, Supervisor Convidado do Centro de Estudos e Atendimentos Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS) do Instituto Oscar Freire da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Autor de livros e artigos científicos publicados no Brasil e na Itália. É também artista plástico – pintor e desenhista, com exposições individuais e coletivas, e com publicações de suas obras, no Brasil e na Europa.