O nascimento de um filho pode abrir um rasgo na vida de uma mulher. De saída, por mais que se experiencie uma gravidez ativa, um parto ativo, isto é, que uma mulher se sinta ali implicada, em uma perspectiva, ela entra no hospital com uma barriga e sai com um neném nos braços. O mesmo vale para um parto natural na sala de casa ou para o recebimento de um filho que chega via adoção. De repente, se está de frente com aquele outro, com o total desconhecido, para ocupar um lugar em construção, chamado filho, em paralelo a outro lugar a construir, chamado mãe. Há algo de traumático nisso por remeter a uma dimensão impossível de ser dita, que não se submete à simbolização (dimensão do indizível que o psicanalista Jacques Lacan chamará por “real”), nesse encontro com o corpo do outro que enceta a criação de dois lugares, que no caso do sujeito humano, como demonstra a psicanálise, não são dados por natureza.

Também, é claro que, pelas mesmas circunstâncias, pode abrir um rasgo na vida de um homem. E cada sujeito que se lança no salto no escuro da singularidade do vir-a-ser uma mãe ou um pai, invariavelmente é confrontado com necessidades que impelem a ir além do que se está acostumado, isto é, a alterar o estado normal das coisas. Como cada um lidará com essas confrontações e quanto se permitirá a transformar suas íntimas normalidades, é outra história. Mas o portal se abre como uma fenda bem embaixo dos pés, revelando dúvidas e angústias, o intraduzível da experiência e o baita trabalho que é criar um filho. Assim, diante dessas novas possibilidades que alteram as peças do jogo do viver, seria relevante questionar até que ponto as experiências da maternidade e da paternidade podem ser mesmo confinadas à esfera privada. Que lugares lhe são destinados pelo corpo social? Como esses lugares são acolhidos e como são assentadas as suas diferenças na nossa cultura?

Para tentar responder algumas nuances dessas questões, me lanço a fazer uma escuta de silenciamentos. De modo geral, diria que tanto o lugar da maternidade como o da paternidade são pouquíssimos acolhidos. O que acontece em casa, na chamada “vida privada”, não diz respeito à vida pública. Aliás, já nem sabemos o que poderia ser o oposto do público sem ser o privado privatizado, em sua lógica que mura a troca de experiências e laços entre as pessoas. Como você está? Precisa de uma ajuda? Quer conversar? Não. Nenhuma palavra de acolhimento. Mas a criança é linda! Que bebê fofinho! Muitas vezes, a graciosidade da criança é tomada como tapume neutralizador das angústias que os pais possam estar vivendo o que, por sua vez, se configura como um modo de desumaniza-los. Esse modus operandi faz lembrar o famoso “eu quero esses relatórios na minha mesa amanhã de manhã”. E se algum erro for encontrado, não interessa o corpo fatigado pela falta de dormir, fatiado pela disjunção de viver tendo que fingir que nada demais está acontecendo nesses primeiros tempos da chegada do filho, o Outro empresarial cobra e exige a eficiência acima de tudo, silenciando quaisquer irrupções do mal-estar que venha pular o muro, sob pena de alta reprimenda.

No entanto, os não acolhimentos, os silenciamentos e as desumanizações, apresentam variantes específicas quando se trata da paternidade ou da maternidade. Para as mulheres, é frequente que apareçam já desde a infância por meio de um ideário biologizante e mecanicista que se apropria de seus corpos e as desumanizam como máquina res extensa: “as mulheres foram programadas para isso, no fundo sabem o que fazer porque ser mãe faz parte de suas naturezas”. “Veja aquela menininha como cuida da boneca, parece que já nasceu sabendo” – como se ela não tivesse sido ensinada a fazer isso. Nesse ponto, cabe dizer que “a mãe” transcende o corpo da mulher. A mãe também é uma instância, um denominador comum que condensa a insígnia que ativa fantasias primitivas inconscientes, que retornam, buscando ‘A’ grande mãe mítica de tudo provedora, aquela que acolhe. Fantasias essas que ajudam a compor o escoramento de uma fantasia ideológica de apelo naturalista que tenta fazer coincidir a construção simbólica do lugar de mãe com um corpo natural apto para gerar outro ser humano, fazendo com que a sociedade se desimplique de suas transmissões e destine a maternidade, logo de início, ao duplo silenciamento: diante do corpo empurrado ao mítico lugar e diante da liberação dos homens da construção de pai, já que diferente delas, “eles não nasceram para isso”.

Com esses precedentes abertos, fica mais fácil que, na nossa cultura, a maior parte do ônus da criação dos filhos ainda recaia sobre as mulheres e, somada à conjuntura político-econômica, parece ser mais difícil para a lógica produtivista conceder os tais cinco ou vinte dias de licença-paternidade previstos na Lei, do que acobertar homens que abandonam suas construções de lugar paterno. O Mercado é ciumento, sabemos. Mas para emissão do cartão do SUS, por exemplo, sequer é necessário perguntar o nome do pai. Vejam, não me refiro aqui à necessidade de constar ou não o nome do pai em um documento ou no cartão do serviço de saúde, mas sim, a desnecessidade da pergunta, justamente numa sociedade que afirma se pautar numa configuração de família ao modo nuclear ocidental. “Melhor não causar constrangimentos, afinal, na prática, todos sabem que é assim mesmo, os cuidados dos filhos ficam mais com as mães…”. Oras, e não seria essa desnecessidade do nome uma grande expressão do poder do patriarcado? É como se houvesse um tácito acordo social para não deixar aparecer o que esconde o espaço vazio de um lugar não ocupado. Ainda que seja somente, o vazio de nome de um progenitor.

Como mostra Lacan, a lógica do discurso capitalista que penetra a subjetividade desta época até os nossos ossos não quer se haver com nenhum espaço vazio, nada que remeta à falta, à castração. Mas quando a essa lógica é acrescida uma estrutura ideológica que tem horror ao feminino, as consequências brutalizantes de tal injunção recaem com muito peso sobre as mulheres e, como não poderia deixar de ser, sobre o lugar da maternidade, ampliando assim o silenciamento e a solidão materna no corpo social. O nome da mãe, ou ainda, o nome mãe, palavra mátria em constante positivação, não só é usado para salvar a pátria, encobrindo a falta do não-nome pai na sociedade, como também é tratado de modo a não permitir que advenha o negativo da experiência: o enigmático deve ser preenchido a todo custo com a natureza programada para dar conta das multitarefas e o acolhimento da elaboração da solidão intrínseca ao traumático da maternidade deve ser substituído pelo isolamento da solidão. E, não há solidão mais só do que quando ela mesma é posta em isolamento.

Desse modo, sob condições de triplas jornadas de trabalho numa sociedade pautada pela exigência ininterrupta de produtividade, as mães precisam fazer “das tripas coração”, se desdobrar muito mais para dar conta do recado do Outro empresarial. Sem poder ter falta nem descanso, desde a gestação percebem que devem silenciar ainda mais seus corpos: afinal, as indisposições e necessidades de delicadezas físicas não passam de pré-textos para as mulheres não serem… enfim, homens!? O Outro empresarial, que detesta o corpo, atua de modo a promover um efeito desfeminilizante da gestação. Usando como armadilha argumentos como o da gravidez não ser doença (muito embora seja tão apropriada como um acontecimento médico) e nem desculpa para descomprometimentos, sentencia: “você pode muito bem vir trabalhar/vir para aula (produzir, produzir) até os últimos dias antes do parto”. O que são 15 ou 20 quilos a mais, o desequilíbrio do corpo, o inchaço nas pernas, as dores nas costas etc., para se deslocar pela cidade (na maior parte dos casos, por transporte público)? Corpo mole! Mole, e assim, furável. O sonho do Outro empresarial é mesmo um corpo duro, rijo, quiçá uma lataria erétil. E estéril.

Nesta direção, a maternidade parece encarnar o ápice da culpabilização cristã da mulher, devendo, portanto, ser punida com veemência: “você não quis? Agora toma!”. Sob a suposta alegação implícita de convocar o sujeito ao seu próprio desejo, a violência é explícita. Para silenciar os gritos de dor do parto a enfermeira lança: “mas na hora de fazer foi gostoso” (como se a dor tivesse que entrar como punição natural ao prazer). Para silenciar a queixas de uma mulher que depois de ter se tornado mãe tem dificuldades para voltar aos estudos e/ou trabalho: “a maternidade foi escolha sua” (como se a escolha de alguém fosse capaz de prever todas as imprevisibilidades e falta de redes de apoio no futuro). E quando a mulher consegue estudar e/ou trabalhar em paralelo aos cuidados de um bebê, pedidos de flexibilizações de horários são burocraticamente calados: “você já teve sua licença-maternidade” (como se esse período fossem férias). Tais exemplos mostram bem a face de uma discursividade que imobiliza, que prende as mulheres como presas de uma imensa voragem contra o furo na lógica produtivista que o lugar da maternidade insere.

Entretanto, há mais um problema. O corpo que gera, queda e animaliza o espírito elevado. É preciso lembrar que na gestação, o corpo da mulher também é a encarnação do mal-estar com a morte. A mãe, a “puta que o pariu”, é culpada e deve ser punida pelo sexo que insere a morte no vivo, isto é, pela geração do vivo sexuado. Como atentou Lacan, “o vivo perde, de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada. Esta falta é real, porque ela se reporta a algo de real que é o que o vivo, por ser sujeito ao sexo, caiu sob o golpe da morte individual”[1]. Por conseguinte, a mãe deve porque dá à luz a dívida, o que divide: o corpo que, por ser carne viva, incorpora o insondável limite.

Assim, levando em consideração que o discurso capitalista se nutre do semblante de que seja possível gozar sem limites, que tudo possa ser abarcado, sem perdas e sem a divisão subjetiva que traz o inconsciente, a mulher quando em condição de geradora, corporifica o esburacamento dessa lógica ao trazer a inserção real da castração pela matéria viva sexuada (e pouco importa aqui se a mãe for adotiva, seu corpo continua sendo o signo desse mal-estar). E ao sustentar sua natureza furada, a de que não exista uma mãe dada por natureza que tampone a lacuna da indeterminação que nos faz humanos, também tem o potencial de promover esburacamentos em algumas determinações culturais. Afinal, nem a saída do puerpério vai fazer as coisas, além dos órgãos, voltarem ao estado anterior. Nessa perspectiva, a maternidade tanto pode ser uma denúncia do feminino espoliado, sacrificado para busca do capital Gozo Total como também uma abertura criativa de impacto social ao inserir a diferença numa normatividade lógica fálica (lembrando que para a Lacan o falo é significante da falta), pois ainda que o bebê possa entrar no lugar de falo para mãe, nem tudo na maternidade é falo. E nem falado.

Portanto, diante de tudo isso, o que a ordenação produtivista pode conceder à maternidade é um lugar de prisão domiciliar, de silenciamento e de punição, sob o fomento de uma espécie de ideal da super-heroína salvadora da pátria, que deve tapar os furos que a chegada de um filho pode abrir na vida íntima e na ordem social. Afinal, que a alteração do estado normal das coisas só altere a vida privada (de acolhimento social). E não o status quo da ordenação coletiva em sua normopatia burocrata vigente.

Isso implica dizer que a abertura de um lugar social mais acolhedor para maternidade, assim como para a paternidade, não virá por nenhuma concessão bondosa, mas por intensas desconstruções e construções provocadas pelos que se assumem ocupando os lugares de função materna e de função paterna, cada qual com suas questões específicas, mas que inevitavelmente mexem com o patriarcado. Para isso, é preciso que cada vez mais essas experiências possam ser faladas e escutadas, trazidas à esfera pública, formando assim redes de apoio a fim de que o calar calejado por anos de silenciamentos possa ser rompido. Enquanto os lugares da maternidade e da paternidade continuarem sendo compreendidos como pertencentes exclusivamente à vida privada, os abusos do Outro empresarial poderão continuar em sua livre atuação violenta, sobretudo contra as mulheres. Somente com a admissão desses lugares ao âmbito político, os abusos poderão ser nomeados e barrados.

Em suma, fazer com que tais discussões circulem cada vez mais para além dos muros de casa, não se trata de fazer estender uma dimensão doméstica à política, fazer dos interesses privados importância pública, como criticou Hannah Arendt[2]. Mas sim, de fazer permear, o que de uma experiência tão íntima e singular nos conecta com o mais profundo coletivo, contribuindo para criar uma humanidade capaz de gerar uma outra política, que se oriente pelo cuidado e responsabilidade perante o sensível, nos retirando da condição de funcionários de uma grande Empresa, com gestantes subalternas.

 

Bibliografia:

[1] LACAN, J. (1964). O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 195.

[2] ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

 

Sobre a Autora:

Luanda Francine é psicanalista com formação em filosofia, Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e coordenadora do grupo de pesquisa sobre “Ética e Direitos dos Animais” do Diversitas – FFLCH/USP. Também faz umas artes e é mãe de uma bebê que chegou abrindo muitos furinhos nas estruturas sociais que emudecem o sensível.

E-mail: luanda.francine@gmail.com