A grande descoberta de Freud foi o inconsciente como o que move o humano em suas ações. Se em sua primeira tópica ele apostava que o inconsciente em uma análise poderia se fazer consciente, na segunda tópica acrescenta que nem todo inconsciente chega ao consciente. O Eu, instância conceitualizada principalmente neste segundo momento da construção freudiana, teria então uma parte na consciência e outra no inconsciente. O inconsciente, longe de se confundir com os comportamentos, se fará presente em suas formações próprias: os sonhos, os atos falhos, os chistes e os sintomas.

Jacques Lacan, acompanhando inicialmente as construções freudianas, busca nos campos da matemática meios de formalizar os conceitos da psicanálise. Para isso, ele priorizou o que estava em jogo das formações do inconsciente nessa práxis. Com o apoio na linguística, concebeu que o inconsciente é estruturado como uma linguagem.

O sonho como uma das formações do inconsciente, apesar de se apresentar com imagens, é para ser lido como um texto. O que no sonhador o sonho protege? Freud nomeia o sonho como uma “Outra cena”. Uma cena onde o inconsciente constrói os meios de escapulir sem que o sujeito se angustie. Afinal, há um aparato para impedir que o inconsciente se apresente para o sujeito. O recalque trabalha para que nada passe sem que haja uma modificação, de maneira que o sujeito não se angustie. Quando algo passa sem essa modificação o sonho é tomado pela angústia, o que nomeamos pesadelos ou sonhos de angústia. Freud recomenda ler o sonho como se fosse um texto, entendendo-o como um rébus. Ou seja, ler as imagens como palavras, código a ser decifrado.

Na primeira tópica freudiana temos a construção do aparelho psíquico conhecido como o “Pente”, que foi construído sobre um modelo ótico. A partir disso, Lacan construirá o seu próprio modelo ótico, baseado nas leis que regem o funcionamento dos espelhos côncavos e planos. Um espelho côncavo, se colocado sob determinado jogo de luzes, “projeta” uma imagem que não está exatamente à sua frente, fazendo o espectador crer que a imagem daquele objeto está em um lugar quando ele na verdade está em outro.

Ele toma essa experiência e acrescenta ainda outro espelho plano em frente, e entre o espelho côncavo e o plano, um ramalhete de flores. Em uma caixa oculta, um vaso vazio. O jogo de luzes fará com que o vaso vazio se projete sobre o ramalhete de flores. O espelho plano, colocado a uma justa distância, refletirá a imagem de um vaso com flores em seu interior para um espectador bem colocado em relação às luzes e ao espelho plano. A experiência vista “de fora” mostra que o espectador vê uma imagem virtual cuja completude é dada pelo espelho plano. A imagem real é a de um vaso vazio, escondido em outro local cuja a imagem é projetada sobre o ramalhete de flores.

Essa experiência foi construída por Lacan para dizer da constituição do sujeito. Nessa conjunção do espelho côncavo e do espelho plano, ele diz que: “Trata-se de um modelo, ao qual sem dúvida o exemplo de Freud me autoriza, não sem se motivar, para mim, numa afinidade com os efeitos de refração condicionados pela clivagem entre simbólico e imaginário;”[1]

Na chamada “Casinha” das Oficinas Culturais Oswald de Andrade foi instalada, pela artista visual Thais Beltrane[2], uma experiência que muito nos diz a respeito dessa construção teórica na psicanálise. Entramos na casinha como que entrando em um sonho. A escuridão quase completa se deixa iluminar para construir uma grande cena de sonho. Ladeada pela projeção de árvores, temos ao centro uma cena que poderia assombrar qualquer um se fosse sonhada. Uma casa rodeada por um tubarão. E se suportamos mais um pouco dentro desse ambiente e buscamos conforto em outra imagem iluminada, no alto à direita de quem olha nos deparamos com o horror de insetos invadindo a cena, através de uma rachadura na parede.

Outra cena na qual encenará sua vida. No entanto, não é uma cena de realidade, mas uma construção feita a partir do trauma do encontro com o semelhante.

Na instalação “quase noite” temos em um só tempo a alienação que a escuridão oferece e que monta a cena de horror, por um lado; e a separação a partir do momento em que se olha de um outro lugar e se percebe que aquilo é uma montagem. Se o Imaginário é essa instância que constrói a Ilusão, a incidência do Simbólico sobre ele faz a mudança de perspectiva e desvela em parte o que era ilusão. Se algo do Real pode ser abordado é na denúncia que os pequenos insetos fazem da rachadura no alto da “casinha”.

A primeira casinha que avistamos reduplica o lugar onde está montada a instalação. Uma casinha imaginária, bordada pelo simbólico dentro de uma casinha real. E o Real que os insetos desvelam é o impossível da situação da cultura em nosso Estado. Um espaço de cultura sem sustento suficiente para a manutenção básica das estruturas do imóvel. Apesar de ser um patrimônio tombado, está tão maltratado que a água lhe invade a cada chuva, aumentando o mofo e as rachaduras em sua estrutura.

De uma só vez, “quase noite” aborda uma montagem que pode nos ajudar a entender poeticamente como um sujeito se constitui, e ainda desvela a situação do nosso patrimônio cultural. Se o sonho é formado para proteger o sonhador e ao mesmo tempo desvelar o seu desejo, podemos entender esta instalação como um sonho cobrindo o real. Ao decifrar seu sonho, o sonhador pode lê-lo a partir de outras referências, desdobrando os significantes que se revelam nas imagens. Seria o desejo desse sonho na casinha o desvelamento do real das rachaduras que destroem a casinha? O desejo de que em algum momento os espaços culturais possam acolher os sonhos com uma estrutura melhor?

 

Notas:

[1] LACAN, Jacques. Observações sobre o relatório de Daniel Lagache. In Escritos, página 679.

[2] Site da artista: http://thaisbeltrame.com/

 

Sobre o Autor:

Glaucia Nagem de Souza – Artista Visual e Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo. Responsável pelo Seminário Psicanálise e Arte. Monitora do ateliê de gravura do museu Lasar Segall de 2007 a 2015.

Participou da reorganização do ateliê de gravura das Oficinas Oswald de Andrade onde atualmente frequenta gravando e imprimindo suas gravuras. Autora de diversos artigos entre eles “O que Willian Kentridge me transmitiu” e “As sereias de Joyce nas letras de Saussure”.

E-mail: glaucia.nagem@uol.com.br