Se em 1984 assistimos se desenrolar na França discussões, congressos e publicações em psicanálise referentes à noção de identificação,[1] trinta anos mais tarde é a identidade que parece estar na ordem do dia.[2] Nesse sentido, Rumo à Identidade [3] é a primeira publicação psicanalítica de maior fôlego a abordar o tema em tal contexto, já ciente de que se trata de uma noção cara aos debates contemporâneos em ciências humanas. Assim, à dissimetria do tratamento dado pelos psicanalistas ao tema da identidade em relação àquele da identificação, Soler oferece uma resposta original: não só coloca a identidade como centro da preocupação de Lacan durante todo o seu ensino como igualmente redescreve todas as séries de identificações simbólicas como respostas a uma falta de identidade do sujeito.[4]

     Não sucumbindo ao caminho fácil de uma crítica em bloco dos efeitos subjetivos do capitalismo, Soler insiste que um dos paradoxos da contemporaneidade se refere justamente ao acirramento das identidades e à lógica segregatória que viria a suprir as falhas do laço social (p. 22). Em face de tal quadro, a autora critica posições saudosistas, que exaltam o passado como um tempo em que os sujeitos não eram “dessubjetivados” e parece sublinhar que a postura ética do analista passa por uma aposta de que os sujeitos estejam não todos aparelhados pelo capitalismo (p. 25).

     Assim, a clínica mostra que é o inconsciente que colocará a identidade em questão por meio de suas diversas formações e, portanto, a função da análise passa a ser a denúncia das séries de fracassos das identificações. Por meio de uma releitura da construção do grafo do desejo, demonstra-se uma primazia do desejo e da fantasia diante das identificações. Mais ainda: ao retomar o texto Subversão do sujeito e dialética do desejo, Soler sublinha o fato de que o desejo antecede a lei e não o contrário. Tal discussão, aliada à constatação de que as notações referentes ao falo não figuram no grafo do desejo, leva a autora a uma tese original: toda a construção e sustentação teórica do falo em Lacan não passam pelo pai. O falo é assim apresentado como aquele significante que exerce uma “função copulatória” entre o sujeito e Outro, e a identificação ao falo seria, portanto, uma identificação ao que falta ao Outro.

     A autora apresenta ainda o que chamará de “equívoco do falo”: como pode esse significante ao mesmo tempo significar o poder e a falta da castração? Ao desdobrar tal questão, Soler sublinha a rápida aproximação feita entre pai e homem no contexto da assunção do sexo e lembra que para a psicanálise o que é de fato mais estruturante é o lugar dado ao pai não como genitor, mas como pai morto, significante puro. Abre-se assim a questão: como se dá a sexuação? [5]

     A solução desse impasse viria apenas com a formulação “não há relação sexual”. Neste quadro, o que está em jogo são, antes, posições perante a castração – os conhecidos lados todo e não todo das fórmulas – e não identificações ou semblantes. Soler retoma a expressão “ares do sexo”, utilizada por Lacan justamente para designar o que há de ideal nas identificações sexuais, que apesar de terem uma função no amor, falhariam na “hora da verdade”, momento do real do sexo no qual as identificações atestariam a inexistência da relação sexual. A autora dá ainda um passo à frente ao sublinhar o caráter contingente das fórmulas que indicam “simplesmente como o casal heterossexual se estrutura quando ele ocorre” (p. 119) sem que, no entanto, sejam uma norma, mas “somente uma possibilidade” (Ibid.).

     É nessa esteira que a autora comenta a máxima da identificação ao sintoma,[6] lembrando que no mesmo período Lacan apresenta o parceiro como sintoma, laço que estaria além do semblante incluindo também aí a dimensão do real. Logo, o que Freud teria demonstrado para a histeria – que o sintoma vem no lugar do sexo – a partir de Lacan teria um caráter estrutural: o sintoma é o efeito da inexistência da relação sexual. E nesse sentido a definição de sintoma dada por Soler é extremamente clínica “é assim que o sujeito percebe o que chamamos de seus sintomas, como algo que é nele, que o incomoda, mas que não é ele. A noção de identificação ao sintoma vem daí. Lacan não faz prescrição de fim de análise” (p. 129). Para a autora, o efeito terapêutico da análise vem, portanto, não de uma mudança no sintoma, mas no sujeito.

Notas:

Texto originalmente publidado na Revista Stylus, no.32, Rio de Janeiro, jun. 2016. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-157X2016000100023, acessado em 02.06.2018.

[1] Para citar alguns, Les identifications: confrontation de la clinique et de la théorie de Freud à Lacan de Monique David-Ménard, Jean Florence, Julia Kristeva, Jean Oury, Jacques Schotte, Conrad Stein. Paris: Denoël (1984). No mesmo ano, temos a publicação de um volume sobre a identificação da Revue Française de Psychanalyse, n. 48.

[2] Além da presente publicação, a jornada dos Colégios Clínicos do Campo Lacaniano de 2014 teve como tema, justamente, “Identité et identifications”. O mesmo tema é trabalhado por Marie-Hélène Brousse em seu seminário em 2015 “Identity Politics avec Lacan”. Para além do lacanismo, o número 30, de dezembro de 2013, das Lettres de la Société de Psychanalyse Freudienne foi dedicado ao tema da identidade.

[3] Resultado do seminário de 2014-2015 do Collège Clinique de Paris, publicado, em português, pela Aller Editora em maio de 2018.

[4] Bem entendido, a autora diferencia uma consciência identitária – imaginária e alienante – da identidade de separação, mais ligada à singularidade e ao que, ao final do livro, definirá como o “Um borromeano”.

[5] Para a autora, Lacan teria, assim como Freud, se perdido nessa explicação que dá ao pai a função de conformidade e normatividade sexual, o que levaria a resultados nos quais, por exemplo, a homossexualidade seria necessariamente um desvio.

[6] Cumpre notar que Soler não cita textualmente o sinthome por mais que a ele faça referência. Seu apelo clínico parece relativizar a necessidade de opô-lo radicalmente ao sintoma.

 

Referência:

SOLER, C. Rumo à identidade. São Paulo: Aller Editora, 2018, 169p.

Sobre o Autor:

Pedro Ambra é psicanalista. Doutor pela USP e pela Université Paris VII, é Professor Titular do Mestrado da Universidade Ibirapuera, Professor convidado do Departamento de Psicologia Social da USP e autor de diversos livros e artigos sobre psicanálise, gênero e sexualidade.

E-mail:pedro.ambra@gmail.com.