Em meados de junho de 2017, um texto viralizou (pelo menos aqui na minha timeline) e pegou a mim e a todos amigos, pais e mães recentes pelo estômago: “O que é sharenting. E qual o limite da prática na era do Instagram”, de José Orenstein[1].

O argumento é intuitivo, unânime e arrasador: o compartilhamento em excesso de fotos dos filhos (sharenting = share + parenting) fere o direito à privacidade deles (incluindo o direito ao esquecimento) e pode até mesmo ameaçar sua segurança. Pronto, se você já se culpava das diversas faltas e excessos como mãe ou pai, coloque aí na sua lista o sharenting em primeiro lugar das coisas que faz, mas não deveria.

A reportagem do Nexo mobilizou outras leituras sobre o tema, até que cheguei ao episódio do casal de youtubers que perdeu a custódia dos filhos após uma série de vídeos em que os expunham a pegadinhas cruéis[2]. Não podemos tomar outra decisão fora essa: nunca mais compartilharemos nem foto de aniversário dos filhos.

Problema resolvido. A reportagem é muito convincente ao evidenciar que é injusto o que fazemos nas redes com nossos filhos e nos aniquila ao indicar a possibilidade de estarmos disponibilizando material para pornografia infantil. Certamente, estamos todos de acordo com esses pontos. Assunto encerrado? Não. O mal-estar causado pelo texto levou-me à seguinte questão: por que bem eu, que não coloco foto nem no perfil do WhatsApp, sucumbo diariamente ao pecado maior de postar fotos dos meus filhos?

Essa questão produziu outra, em relação ao termo sharenting, que inclui pais e mães: pais postam fotos dos filhos na mesma quantidade que mães? Postam impulsionados pelas mesmas causas? Tenho minhas dúvidas. Desde que meus filhos nasceram, passei a seguir inúmeros perfis de mães que faziam me sentir menos E.T. Confesso que dei também muitos unfollows em outras, que me lançavam num buraco diante dos ideais da amamentação e do bom desenvolvimento infantil. Vejo muitas mães se encontrando nesse lugar, da mãe que compartilha sua vida junto aos filhos, mas vejo poucos pais. Por quê?

Sabemos com a psicanálise que se identificar é uma forma de dar contorno à angústia da indeterminação. Há momento de maior indeterminação do que o acontecimento de ter filho? As relações profissionais que podiam sustentar alguma estabilidade identitária estão em suspenso, o casamento vira de cabeça para baixo, o corpo se transforma numa velocidade inapreensível, até as comidas ou bebidas que estamos acostumadas a ingerir tornam-se restritas. Enfim, entendo que “tornar-se mãe”, ou ainda, identificar-se profundamente com esse lugar pode cair como uma luva para a ocasião. Trata-se da luva do contorno social. Sim, vestir-se de mãe, para a mulher que acaba de ter filho, pega bem socialmente e subjetivamente. Mas sabemos também que essa identidade pode ter, em alguns casos, prazo para acabar, afinal, “o menino já fez um ano, não dá mais pra ser só mãe, como você vai se sustentar? E a sua carreira, não dá pra deixar de lado, certo”?

Por outro lado, essa não é uma pressão restrita ao campo social, talvez apenas fôssemos mais generosas em relação ao prazo de licença à maternidade, mas ser mãe e somente mãe pode afligir muitas mulheres. Desde a primeira noite mal dormida ou a constatação de que nenhuma peça do armário cabe mais em nosso corpo, ressentimos menos do tempo em que não tínhamos filho e mais do tempo em que não precisávamos ser integralmente mães: “eu amo minha barriga, mas queria poder vestir aquela calça pelo menos nessa festa” ou ainda, “sabia que meu sono não seria mais o mesmo, mas se eu pudesse pelo menos dormir essa tarde, depois de encher a barriga de feijoada, puxa, hoje é sábado…”

Os pais novatos são tomados pelo acontecimento de ter filho da mesma forma? Creio que não. A responsabilidade maior diante do filho ainda recai socialmente sobre a mulher. Isso para mim, antes de ter filho, era papo de feminista, no pior sentido que essa frase pudesse ter. Hoje, é papo de feminista sim, e parece que me tornei uma delas, sem querer, num piscar de olhos, ou melhor, após um trabalho de parto de gêmeos que durou 7 horas.

O que me dei conta desde a gravidez e tenho conversado com amigas mães e não-mães é que os pais estão desamparados diante do acontecimento que é ter filho, tanto quanto as mães. Ou seja, a culpa não é dos pais, que isto fique claro. O problema é que a falta de amparo social exige muito mais da mulher, pois, ainda hoje, na maioria das vezes, o homem volta a trabalhar antes e a mãe é tomada como o ser dentro daquela casa que “lida melhor com a criança” ou que tem mais “disponibilidade interna” para o bebê. A boa notícia é que hoje esse fenômeno é visto como um problema já retratado em diversas produções culturais[3] e discutido em mídias sociais[4] de grande alcance. Não entendo que pais e mães precisem lidar da mesma forma com o nascimento do filho. Toda família deveria poder escolher, construir e distribuir funções diante dessa transformação profunda que comove a todos, a partir do desejo e da história de cada um. Suponho que para tornarmos isso possível seja preciso uma mudança no imaginário social relativo à maternidade e à paternidade acompanhada de novas políticas públicas que deem suporte a essa mudança.

As redes de apoio aos pais, as atividades culturais, os espaços adequados aos bebês, os espaços de trabalho para pais com estrutura para o cuidado do bebê são ainda incipientes. Certa vez, colegas de um outro canto do mundo nos relataram sua indignação com os preços das “casas de brincar” espalhadas por São Paulo. Como manter uma rotina comunitária com seu bebê, sem gastar mundos e fundos? Soma-se a isso o tema da licença, no Brasil ainda tão restrito às mães[5].

A maternidade é muito solitária. Postar fotos dos filhos pode ser uma modalidade de laço social diante do profundo isolamento enlouquecedor que é ser mãe hoje. Não é à toa que os filhos crescem e as fotos diminuem. Por que não são mais tão fofos? Talvez. Mas certamente o fato de a mãe ter voltado a circular, seja no trabalho, seja em ambientes de lazer, faz com que nossa necessidade narcísica de mostrar para deus e o mundo nossas lindas crias reduza bastante. Na verdade, a gente continua falando sobre nossos filhos. Mulheres falam muito dos filhos, a maternidade não é algo restrito aos primeiros anos de vida do bebê. Mas a gente passa a falar na rua, na padaria, no salão de beleza, no trabalho, no bar, na análise, no grupo de estudos e quando a gente chega em casa, postar uma foto seria pura redundância.

Em minha dissertação de mestrado, sobre solidão e psicanálise[6], delineei uma solidão ética pela via analítica, na qual o sujeito se separa um pouco da expectativa de complementaridade com o outro. Winnicott desenvolveu esse ponto a partir da ideia da capacidade de estar só e em Lacan a experiência solitária se associa à impossibilidade da compreensão plena em termos intersubjetivos. Nesse sentido, tal experiência é simbólica e importante para o sujeito, visto que lhe desperta a atenção para questões relativas à sua condição faltante. Gostaria de um dia tratar da solidão na maternidade nesses termos, pensando nas experiências de gerar e de amamentar como radicalmente intransmissíveis e singulares. Mas entendo que estamos historicamente muito aquém desse momento. A solidão assola a maternidade, não só na esfera do gerar e do amamentar. O campo social e cultural ainda produz isolamento e sobrecarrega a mulher.

A legitima crítica ao sharenting me faz pensar sobre a precariedade da convivência nas grandes cidades, sobre como estamos sozinhos nas redes “sociais” e que os homens também estão muito atrapalhados e solitários em suas paternidades, sentindo-se demandados e, mesmo quando querem ocupar um lugar mais participativo, não possuem respaldo cultural e social para fazê-lo. As conversas entre mães e as produções contemporâneas nos revelam que as mães ainda estão penando muito, sozinhas, sustentando seu narcisismo no instável e imaginário número de curtidas que a foto do bebê produz. Acho significativo que essa solidão produza o sharenting como sintoma dos pais, sobretudo, das mães. Faz-me lembrar que por trás da foto do bebê fofinho de roupas coloridas combinando com a roupa de cama do berço impecável, há uma mãe descabelada que pode ainda não ter conseguido tomar banho. Parece-me uma solução torta, substitutiva, que testemunha a fragilidade das nossas políticas públicas voltadas a pais e mães dos recém-nascidos.

Continuo vendo o sharenting como um problema. Mas os poucos recursos sociais à vivência da paternidade e da maternidade me afiguram como questões maiores. Meus filhos certamente terão que lidar com pessoas que viram suas fotos antes que tivessem capacidade de escolha em relação a isso, da mesma maneira que terão que se virar com outros excessos e faltas que cometemos em nossas funções de pai e mãe. Diante dessa culpa gigante, tenho Winnicott de um lado, me lembrando que posso ser uma mãe apenas suficientemente boa e Freud do outro, dizendo-me que não há garantias contra o sofrimento neurótico dos nossos filhos.

Notas:

[1] Ver. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/11/O-que-%C3%A9-sharenting.-E-qual-o-limite-da-pr%C3%A1tica-na-era-do-Instagram.

[2] Ver. https://www.theguardian.com/us-news/2017/sep/12/youtube-parents-children-heather-mike-martin

[3] Citaremos duas produções que estão saindo do forno e acessíveis no Netflix: A série australiana “Turma do Peito (The Letdown)” e o filme “Eu não sou homem fácil”, de Èléonore Pourritat. A primeira retrata mais diretamente as questões ligadas à maternidade e a segunda aborda questões de gênero mais abrangentes. Ambas visam fazer um drama bem-humorado dos conflitos atuais relativo a essas questões.

[4] Algumas youtubers como “Hel Mother” e “Mãe solo” têm feito uma discussão sobre as desigualdades de gênero dentro da temática maternidade/paternidade. A ONG “Think Olga” também, desde 2013 vem fazendo discussões sobre empoderamento feminino, inclusive divulgando leis pouco conhecidas de proteção à mulher.

[5] O filme “O Começo da Vida” (2016), de Estela Renner, aborda a falta de respaldo social para quem escolhe ter filhos, sobretudo no que se refere à lógica de trabalho contemporânea que inviabiliza a presença de homens e mulheres nos primeiros anos de vida do bebê.

[6] Tatit, I. Do discurso de isolamento a uma experiência de solidão. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2012. Pode ser acessada no site: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=13981

Sobre a Autora:

Psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, mãe de Lucas e Martim, os gêmeos vítimas de sharenting e de muitos outros “parentings” ainda sem nome.

E-mail: i_tatit@hotmail.com.