Por Ana Lucia Gondim Bastos *

 

“Deslembro incertamente. Meu passado

Não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui,

Está confusamente deslembrado

E logo em mim enclausurado flui…” (Fernando Pessoa)

 

Deslembro, filme de Flavia Castro (2019), tem como protagonista a adolescente Joana (Jeanne Boudier), nascida no Brasil e criada na França desde muito pequena. A adolescente, junto com a família constituída no exílio político, para o qual partiu com a mãe (Sara Antunes), vive o retorno – depois de promulgada a lei da anistia – à nação “que mata e tortura as pessoas”. Junto com o retorno ao Brasil, inevitavelmente, retornam reminiscências de um passado deslembrado, e a jovem passa a ter que buscar, em meio aos escombros de uma história apagada, a reconstrução de uma identidade e de uma narrativa de vida. Os deslembros de Joana se dão para além das questões próprias das costuras de narrativas de vida e dos arranjos para se lidar com a indestrutibilidade do passado nessas costuras. Dão-se, também, pela própria condição de exílio, pelo desaparecimento do pai (um morto sem corpo para ser enterrado) e pela circunstância de anistia política. Por isso, as dimensões da memória coletiva e a memória individual se colocam de forma muito particular nesse roteiro de Flavia Castro. Remete a ideias de Jeanne Marie Gagnebin, autora francesa radicada no Brasil que se dedica a compreender melhor “as relações de ignorância e de indiferença que prevalecem em relação ao passado no Brasil, em particular em relação à ditadura, mas também à escravidão e às lutas e resistências populares em geral”1 e que, para isso, recorre ao conceito de “memória impedida” de Paul Ricouer2, que, por sua vez, desenvolve a discussão em bases teóricas freudianas. Diz Gagnebin: “a anistia não consegue o que sua semelhança fonética com o termo de amnésia promete: ela não pode nem impedir nem mudar o lembrar, ela não pode ser um obstáculo à busca da ‘verdade do passado’, como se diz, aliás de maneira bastante ambígua. Ela somente pode criar condições artificiais, talvez necessárias, que tornam possível uma retomada mínima da existência em comum no conjunto da nação. Ela configura uma trégua, uma calmaria provisória, motivada pelo desejo de continuar a vida, mas não é nenhuma solução, nenhuma reconciliação, menos ainda um perdão.” Daí vem a ligação da anistia com a noção de memória impedida: um esquecimento exigido pelo poder público, que condena consecutivamente à possibilidade de repetição de experiências traumáticas e à necessidade de trabalho de luto na história3.

Então, a memória de Joana passa a ser a de todos nós, oportunamente, num momento histórico no qual os horrores daquele passado silenciado começam a fazer eco no presente, ameaçando muitas das conquistas que pareciam consolidadas pelo Estado de direito. O delicado roteiro, nesse sentido, nos leva a lembranças e ao fundamental trabalho da memória, tão discutido por Freud, em um dos seus textos nos quais Ricoeur se apoia para conceituar memória impedida, “Recordar, Repetir e Elaborar” (1914). Assim, Deslembro, mais do que um filme belo, é um filme necessário para a elaboração de um luto coletivo (para fazer referência a outro texto freudiano que sustenta o conceito de Ricoeur, aqui utilizado, “Luto e Melancolia”, de 1915).

Contudo, definitivamente, não é possível falar de Deslembro dando ênfase apenas à perspectiva da memória coletiva. A trilha sonora, cuidadosamente escolhida e que dialoga poeticamente com a fotografia sensível de cada cena da vida de Joana, nos leva, inevitavelmente, para memórias de nossos próprios tempos conturbados e belos de adolescência. Para nossas músicas, amores, dores e dissabores que sustentam a questão, desde lá, sempre atualizada: Existirmos, a que será que se destina?4

Texto originalmente publicado em 10 de julho de 2019 no blog Tecendo a Trama. Link: https://tecendoatrama.com/2019/07/10/filme-deslembro/.

*Ana Lucia Gondim Bastos é psicanalista, membro do departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes e doutora pelo Instituto de Psicologia da USP.

Referências bibliográficas

1 – GAGNEBIN, Jeanne Marie. “O preço de uma reconciliação extorquida”. In: TELLES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.) O que resta da ditadura – a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

2 – RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

3 – FARIA, Mateus Henrique de; FERNANDES, Juliana Ventura de Souza; SILVA, Caroline Cristina Souza. ”Os conceitos de memória impedida, memória manipulada e esquecimento de reserva em A memória, a história, o esquecimento de Paul Ricoeur: entre o trauma e a conciliação”. In: http://www.academia.edu.

4 – Cajuína (Caetano Veloso): Existirmos/ A que será que se destina/ Pois quando tu me deste a rosa pequenina/ Vi que és um homem lindo/ E que se acaso a sina/ Do menino infeliz/ Não se nos ilumina/ Tão pouco turva-se a lágrima nordestina/ Apenas a matéria vida era tão fina/ E éramos olharmo-nos intacta retina/ A cajuína cristalina em Teresina.