Na obra “Sapiens: uma breve história da humanidade”[1], o historiador israelense Yuval Noah Harari aborda o percurso do Homo Sapiens desde seu surgimento até o prenúncio de seu possível desaparecimento em decorrência das intervenções proporcionadas pela revolução científica. Como se imagina, o livro pode interessar de uma perspectiva histórica, mas também biológica, antropológica, cientifica, política e econômica. Escrito de forma leve e bem-humorada, ele abre realmente um leque de reflexões em cada uma dessas áreas – dentro, é claro, do que se pode esperar de uma obra não especializada -, todas elas muito importantes para pensarmos o mundo em que vivemos hoje. Uma espécie de mescla entre Carl Sagan, análise política e Black Mirror.

Mas o que me fisgou para a escrita desse texto foi uma questão que surge em diversos momentos do livro e que me interessa enquanto psicanalista e cidadã imersa no atual cenário político brasileiro. Ela poderia ser colocada assim: “para onde caminha a humanidade?”. Trata-se de uma pergunta de cunho ético, já que é assim que nomeamos o estudo daquilo que move a conduta humana.

A obra começa com a primeira grande revolução, que permitiu ao sapiens superar evolutivamente as outras espécies do gênero Homo como o rudolfensis, o erectus, e o neandertal…sim, todos eles humanos!

Essa superação se deu devido ao que o autor chama de “Revolução Cognitiva”, o que se aproxima muito daquilo que os psicanalistas (especialmente os lacanianos) formulam, por vias diferentes e com conclusões que se aproximam bastante, como sendo o momento de nossa entrada na linguagem. Foi esse acontecimento que abriu a fenda entre o Homo Sapiens e todas as outras espécies animais, criando uma distância que se tornou cada vez mais abissal. Não uma linguagem comunicativa qualquer. Isso pode ser facilmente encontrado entre diversos animais. Uma linguagem peculiar, capaz não apenas de transmitir informações, mas também de criar coisas que não existem objetivamente: lendas, mitos, deuses e religiões. Isso porque um indivíduo sozinho pode ser rapidamente esmagado e desaparecer, mas quando um bando começa a se unir em torno dos mesmos mitos, o poder de colaboração aumenta e as pessoas passam a aceitar dedicar suas vidas a um projeto comum.

Essa criação ficcional pode nos remeter inicialmente aos povos primitivos e seus totens e tabus, mas o autor brinca com nossa racionalidade instituída, mostrando como as nossas instituições modernas funcionam nas mesmas bases: o Estado, as corporações, o dinheiro … nada disso existe objetivamente fora das nossas crenças e lendas.

O que ocasionou essa mudança, que transformou o Sapiens na espécie dominante do planeta, permanece um enigma. O fato é que esse acontecimento não foi apenas um marco histórico pontual, mas mudou a velocidade com que outras mudanças foram se dando, numa espécie de exponencialização das revoluções. O que o autor diz é, praticamente, que com a entrada na linguagem escapamos da trajetória evolucionista, pois não precisamos mais esperar por séculos de mutações genéticas para dar novos saltos cognitivos e culturais. Enquanto um ser aquático pode passar bilhões de anos na mesma vidinha até sofrer uma mutação e conseguir viver na terra, nós praticamente vivemos uma revolução por minuto (se pensarmos em uma escala evolutiva) sem que, com isso, precisemos passar por alterações genéticas. Basta observarmos que há cerca de duas décadas precisávamos de uma enciclopédia para consultar um verbete, enquanto hoje o celular mais simples acessa praticamente qualquer informação em tempo real.

Infelizmente, o autor esquece com frequência do que ele mesmo disse e acaba recorrendo à psicologia evolutiva para explicar temas como a sexualidade e a alimentação, por exemplo. É mesmo incrível o poder do “não querer saber”! No entanto, essas contradições não chegam a tirar o interesse na leitura, deixa até um pouco engraçadas as situações embaraçosas em que ele se encontra quando topa com esses “impossíveis”.

Mas, contradições à parte, o que é mais chocante no texto de Yuval é o como a “evolução” do homo sapiens é marcada por um rastro de destruição como só essa espécie foi capaz. Desde seus primeiros deslocamentos pelo globo, por onde o Sapiens passou, desapareceram não só as outras espécies do gênero Homo, como também todas as grandes espécies pré-históricas existentes. Ao longo da história e com os sucessivos avanços tecnológicos, a revolução agrária, a navegação, as conquistas imperialistas e as grandes guerras, essa devastação só se aperfeiçoou e se aplicou com sanha igualmente feroz contra indivíduos de sua própria espécie. A lembrança do texto freudiano de 1930 é inevitável: “Homo homini lupus [O homem é o lobo do homem]; quem, depois de tudo o que aprendeu com a vida e a história, tem coragem de discutir essa frase?”[2].

É muito interessante acompanhar na leitura fluída do livro como caminhou o tempo e com ele a sucessão de outras revoluções. Cada uma com sua cota de destruição, mas também de enormes avanços e conquistas das quais todos nós gozamos hoje; inclusive eu (para estar aqui escrevendo esse texto no meu computador) e você (lendo aí no seu). Ninguém é inocente nessa história, todos vivemos às custas do sangue derramado dos aborígenes, dos astecas e dos índios brasileiros. Em alguns momentos o autor coloca os avanços como impossíveis de serem detidos e a destruição consequente como um mal inevitável. Simplesmente é assim que avança essa dança entre a nossa curiosidade, a vontade de dominar o mal-estar que invade a existência e o poder político–econômico de cada época. Na nossa, teríamos esse casamento indissolúvel entre capitalismo e ciência, que se encaminha para um futuro que o autor anuncia como fim do Homo sapiens, seja pela destruição, seja pela superação de seus limites com a criação de uma nova raça.

Mas qual o móbil desse movimento? De modo até meio ingênuo, responde o autor, deveria ser a felicidade. No entanto, logo ele mesmo constata: todas essas revoluções progressistas não se traduziram em um aumento da sensação de bem-estar subjetivo. Aumentamos a cobrança sobre as nossas potencialidades, vivemos sob a pressão da sentença do time is money, diminuímos nosso limiar de tolerância ao desconforto, corremos em busca de objetos que prometem satisfação, mas que só acentuam nossa falta. Outro ponto problemático, diz o autor, é que felicidade e bem-estar não formam necessariamente um continuum.

Podemos nos sentir mais felizes, mesmo experimentando algum mal-estar, por exemplo, quando estamos envolvidos com causas que fazem sentido na nossa existência. Yuval fica por aí, mas poderíamos acrescentar com Freud (que se interessou por questões parecidas no início do século XX): o sujeito também goza no mal-estar e nem sempre segue “no caminho do bem”, como cantava Tim Maia.

Em meio a uma certa perplexidade, o autor admite que o grande problema é que esse mesmo sapiens que se descolou da biologia para revolucionar o mundo a partir da sua capacidade ficcional, é um completo ignorante quando se trata de lidar com seu desejo. Não sabemos para onde caminha a humanidade e pior, não sabemos para onde queremos que ela caminhe. E finaliza:

Apesar das coisas impressionantes que os humanos são capazes de fazer, nós continuamos sem saber ao certo quais são nossos objetivos e, ao que parece, estamos insatisfeitos como sempre.

Avançamos de canoas e galés a navios a vapor e naves espaciais – mas ninguém sabe para onde estamos indo. Somos mais poderosos do que nunca, mas temos pouca ideia do que fazer com todo esse poder. O que é ainda pior, os humanos parecem mais irresponsáveis do que nunca. Deuses por mérito próprio, contando apenas com as leis da física para nos fazer companhia, não prestamos contas a ninguém. Em consequência, estamos destruindo os outros animais e o ecossistema à nossa volta, visando a não muito mais do que nosso próprio conforto e divertimento, mas jamais encontrando satisfação.

Existe algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem.[3]”

A pergunta de Yuval só faz reforçar aquilo que a Psicanálise já diz há décadas: ignorar nosso desejo é o caminho mais certo para persistir na repetição do nosso sofrimento. No Brasil de hoje, enquanto escrevo esse texto, parece mais urgente do que nunca nos colocarmos algumas questões sobre ele.

Somos um país com um passado traumático, marcado pela exploração, pela carnificina, pela escravidão e pela ditadura. Após vivermos um único e curto período da história no qual essa repetição foi minimamente tocada, assistimos hoje a um retrocesso político e moral que nos lança diretamente – não nos anos anteriores ao governo trabalhista – mas numa época ainda mais reacionária, em que se pede intervenção militar, se impede exposições em museus, e em que se achincalham instituições democráticas fundamentais como o voto popular e  a separação entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, maculando a imparcialidade que se espera deste último.

Talvez o que se desvele agora é que nunca vivemos efetivamente uma democracia. A mão invisível do mercado, que sempre esteve no controle através de dispositivos velados, agora escancara sua ingerência num cinismo explícito, chegando a colocar na cúpula do poder o que há de pior em termos de corrupção, valendo-se do argumento de lutar contra ela.

Atônitos, nos perguntamos: como foi que chegamos a esse ponto? Como um movimento que parecia apontar em direção a uma flexibilização da rígida estrutura de desigualdade social caminhou para o fato de termos como candidato com reais chances de ser eleito um sujeito defensor da tortura, da misoginia, da homofobia e da exploração dos trabalhadores?

É aí que entra o risco do desconhecimento do nosso desejo que Yuval apontou e que a Psicanálise já sabe de longa data. É aí que os interesses econômicos acabam invariavelmente apelando para pautas morais para continuar se mantendo no poder. O medo primitivo que habita os quartos escuros do nosso corpo é um poderoso recurso do qual as forças reacionárias lançam mão quando se sentem ameaçadas. Foi assim em 64 com a famosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, é assim nos dias de hoje quando um chamado Movimento Brasil 200 formado por grandes empresários brasileiros vem, ironicamente, a público com o lema “Independência para todos” pautar uma agenda fundamentada em 10 princípios, basicamente os da velha proposta da redução do Estado e maior liberdade para o mercado. Até aí tudo bem, são apenas empresários sendo empresários. Mas lá no final, como último dos 10 princípios podemos ler: “Proteção às crianças. Escola sem partido e sem erotização precoce, respeitando o senso comum e as famílias”. Ora, desde quando o mercado se preocupa com a erotização das crianças? E o que faz uma pauta moral como essa em meio a princípios para uma agenda econômica?

A resposta é simples: ela não está aí porque se coaduna com o liberalismo do mercado. Longe disso, ela é a isca! Ela serve para nos fazer aderir às outras nove, essas sim, de interesse econômico. O apelo ao medo do corpo, da sexualidade (sempre infantil), nossa desconhecida, está sempre à mão para dar forma ao inominável do mal-estar que nos assola. E pior, vem sempre sob a forma do outro ameaçador, que com seu gozo obscuro põe em risco nossas conquistas. A entrevista recente do cantor Mano Brown é especialmente esclarecedora quanto a isso, quando ele aponta para uma atual convergência entre a periferia e as forças reacionárias da polícia e da igreja.

Pior ainda é pensar que o recurso a esse moralismo não é exclusividade da direita reacionária. Parte da esquerda também se fragmentou em lutas das chamadas “minorias”, cada vez mais marcadas pelo narcisismo das pequenas diferenças e que, volta e meia, apela para a regulação do politicamente correto na tentativa de modular um gozo que é atribuído exclusivamente a um outro ameaçador. Sim, isso também é útil ao mercado. Tudo o que não ameaçar a lógica capitalista do lucro e da propriedade privada é útil ao mercado. Esses dias fui surpreendida por uma campanha de uma famosa marca popular de hidratantes e sabonetes com o slogan: “minha pele, minhas regras”. Viralizou, virou mercadoria. Simples assim!

Não existem saídas prontas para a encruzilhada em que nos encontramos. Mas qualquer indicativo de que venha a surgir tende a fracassar se não levar em consideração esse fator moral. A aposta da Psicanálise vai no sentido de aproximarmo-nos do nosso desejo, não para satisfazê-lo a qualquer preço, mas para, identificando seus limites, encontrarmos algum modo de respondermos eticamente por ele. É um caminho furado, precário, difícil de sustentar, mas como disse certa vez Lacan, ainda é o melhor que a civilização conseguiu inventar.  Podemos dizer o mesmo da democracia.

Notas:

[1] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2017.

[2] FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930) In. FREUD, S. O mal-estar na civilização, Novas Conferências introdutórias à Psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.77.

[3] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2017 p.427-428.

Sobre a Autora:

Lia Silveira é psicanalista, professora da Universidade Estadual do Ceará, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns de Psicanálise – Brasil, fórum Fortaleza.

E-mail: silveiralia@gmail.com.
Blog da Autora: http://meiorosameiolia.blogspot.com.br