A busca de um diálogo com as obras e textos de artistas dos mais diversos períodos tem sido um norte em meus estudos. Neles, tento abrir os olhos e os ouvidos para o que a arte e suas manifestações podem ensinar à psicanálise. Lacan propõe esse movimento quando nos aponta que artistas como Marguerite Duras possuíam um saber que antecedia as construções que ele, como psicanalista, se esforçava em fazer e transmitir. É com essa bússola que me voltei às imagens e a alguns textos de uma exposição recente.

Em comemoração ao seu 70º aniversário, o MASP realizou uma exposição internacional que expunha, além das 9 obras de Toulouse-Lautrec de seu próprio acervo, produções pertencentes a vários outros museus e coleções particulares, perfazendo um total de 75 trabalhos e 50 documentos e cartas. O diretor-presidente faz sua apresentação ressaltando que a programação deste ano será dedicada ao tema da sexualidade. Ele diz: “a exposição Toulouse-Lautrec em vermelho contribui para o debate sobre arte, sexualidade, história social e cultura visual na virada do século 19”.[1]

Algo que me intrigou durante a visita à exposição foi o modo como cada obra era apresentada nas legendas que as acompanhavam.

Se considerarmos a proposta apresentada pelo diretor-presidente poderíamos afirmar que a sexualidade, ou um modo de apresentar a sexualidade, a história social e a cultura visual na virada do século 19 estão maciçamente presentes. Mas se essas legendas têm o interesse de dar alguma orientação aos visitantes da exposição (isso abriria outro campo de discussão que não entrarei neste artigo), o papel da mulher na sociedade da virada do século a ser visto naquelas imagens seria mesmo o mais importante?

Volto ao catálogo. A apresentação feita por Luciano Migliaccio, curador adjunto de arte europeia, contém algo que pode entrar nesta conversa: “Além de ter sido o icônico cronista da vida e dos espetáculos noturnos parisienses, e de representar um novo tipo de profissional que fez da propaganda comercial um veículo inédito da arte, Toulouse-Lautrec estabeleceu com suas obras uma nova noção da forma figurativa, incorporando nela elementos emotivos e dinâmicos, fazendo da pintura não mais o espaço da representação, mas da duração e da ação, isto é, da existência. Em suas obras, o espaço e o tempo, intrinsecamente unidos, são dados imediatos da consciência, para usar as palavras do filósofo Henri Bergson (1959-1941). Por esse motivo, Lautrec pode ser considerado uma das principais referências para todas as poéticas da imagem posteriores ao impressionismo”. [2]

É interessante que em sua apresentação Migliaccio foque naquilo que da obra de Lautrec pode ser lido como sua poética. E apesar de, como um bom flanêur de sua época, o pintor habitar os cabarés, sua poética ultrapassa o que poderia ser encaixado no tema da sexualidade. Os corpos femininos que se multiplicam em seus quadros trazem, para além da representação da sexualidade e do sexo, o seu olhar.

A história social e cultural da virada do século são temas que podem com certeza ser extraídos de sua obra, assim como a relação da mulher com a sexualidade neste período. Mas algo na posição de Lautrec traz um ensino quanto a tudo isso. Ele nos oferece o seu olhar com títulos breves que nomeiam alguns personagens, o lugar onde foi feita a obra ou apenas, como na obra que nomeia a exposição, o objeto central do quadro: um divã.

Exposições paralelas aconteceram neste mesmo museu. Trarei apenas uma para esta conversa: a de Wanda Pimentel. A artista brasileira traz em sua série Envolvimentos diversas imagens nas quais objetos cotidianos se misturam com partes do corpo e com ambientes de uma casa. Ventilador, pernas, capuz. Mesa, cigarros acesos, tapete, em cores primárias e linhas secas. Vera Beatriz Siqueira nos apresenta a poética desta artista dizendo que: “Na série Envolvimentos, a artista elege o problema da relação do homem, e mais particularmente da mulher, com os objetos que dominam o seu ambiente”.[3]

Mais adiante afirma ainda que “A identificação do objeto como tal, entretanto, é central para o funcionamento da poética de Wanda Pimentel, cujo propósito fala de nossa desatenção para com maçanetas, portas, clipes de papel, aparelhos domésticos, objetos cotidianos. A artista enxerga nessa desatenção mecânica um dos problemas centrais do mundo contemporâneo, já que, naturalizando a presença das coisas, o homem perde sua referência de humanidade, de ser natural, confunde-se com as suas posses, coisifica-se. Só a atenção amorosa pode gerar a crítica e a denúncia”[4]

Como um humano circula em seu ambiente, o que olha e como olha, são os vetores oferecidos pelos artistas. Isso se apresenta de modo especial nas apresentações dos curadores. Mas para além disso há uma extrapolação que me parece apontar mais para uma confusão entre o que é o tema do artista e o que seria um tema do contexto contemporâneo. O artista de cada tempo tem a nos oferecer seu olhar. O que olha e como olha. Qual o tratamento dado ao objeto e à representação.

A tensão entre o tema dado pelas exposições e a poética do artista pode fazer pensar em como a psicanálise também pode se embaralhar com o que se pretende com uma análise e os temas do mundo. A leitura insistente das obras de Lautrec pelo viés social e cultural achata sua poética. No caso de Wanda Pimentel, há um achatamento ao insistir em uma arte feminina. Apesar de em nenhuma das duas isso ocorrer de maneira unívoca, ambas acabam sofrendo do mesmo problema.

O gênero, o modo como os corpos gozam, seria o principal em uma poética?

A sexualidade não se reduz aos corpos. Foi a partir disso que Lacan pôde avançar com sua construção das fórmulas nomeadas da sexuação. Em seus primeiros seminários temos sua leitura rigorosa do Édipo freudiano baseada no estruturalismo. Não mais “papai”, “mamãe” e “filhinho”, mas pai como função que interdita a relação do sujeito a um Outro primordial, e nessa operação uma falta que instaura um oco que divide e (im)pulsiona um sujeito.

O pai como metáfora e o falo como significante são o resultado da perspectiva que a linguística saussuriana ofereceu à Lacan. Isso se manteve por muito tempo. Mas uma mudança se impôs na medida em que Lacan avançou. O pai não mais como metáfora, mas como um Dizer: “Um que diz não”. Este instaura o necessário para a entrada do sujeito na ciranda da linguagem, o que poderia traduzir a seguinte fórmula lógica: Existe um x que diz que não à função fálica. O falo, não mais como significante, mas como função que introduz o vazio na série que constitui um sujeito.

Acompanhando o esquema abaixo seguimos do Necessário no alto à esquerda para o Possível abaixo à esquerda. Bousseyroux explica essa passagem da seguinte maneira: “não há todo, não há universal que não se reduza ao possível, aqui ao possível da castração, como podendo não ter lugar, pois a única definição do possível é que ele possa não ter lugar […] que todos os homens sejam submetidos ao possível da castração entra então em contradição com o necessário que de um dizer tenha esse não do pai”. [5]

Esses dois passos do esquema são o que se nomeia como o lado homem.

Mas o oco cavado no choque com o semelhante destaca o que é do objeto, da falha que os equívocos provocam. O que essa falha introduz é o que se nomeia como contingência no que diz respeito à sexuação. A contingência no esquema abaixo é um rebatimento como resposta do lado onde entra o “não-todo” submetido à castração.

Mas do lado “não-todo” temos ainda o rebatimento dado pelo indecidível para a o Impossível de haver um que não esteja submetido à castração. O que responde ao “Existe Um” do Necessário, sem o qual não funciona. Esse esquema que figura logo abaixo é apresentado no final do seminário 19. Opto por esta apresentação e leitura pois é anterior aos elementos que Lacan introduzirá alguns meses depois no seminário seguinte.

Bousseyroux afirma que funciona como um jogo de amarelinha onde o sujeito joga uma ficha a cada vez em cada campo.[6] O que nos surpreende nessa apresentação que Lacan propõe a partir dos anos 70 é que um sujeito se posicionará nesses campos marcando sua posição discursiva em relação aos semelhantes. O falo não sendo um privilégio masculino, mas uma função com a qual os sujeitos falantes terão de lidar, cada qual da posição que lhe convém. Ele chega a afirmar no seminário 20 que qualquer um dos seres falantes se inscreve de um lado ou de outro.[7] Assim, podemos afirmar junto à Nguyên “antes do encontro sexual há a sexuação”. [8]

A sexualidade como erótica do corpo (o que determina o modo de gozar do próprio corpo e do corpo do próximo) se dá num tempo que não se confunde com a posição quanto à sexuação. O dizer que amarra o sujeito e o localiza discursivamente enlaça também o sujeito com o seu corpo. Mas o sujeito que se localiza no lado Todo não é sinônimo de que é do gênero masculino. Do mesmo modo, um sujeito que se posiciona do lado Não-Todo não se cola ao gênero feminino. Como Soler afirma: “No ato, os atos sexuais heteros ou não, donde o sucesso da partição da relação sexual, não esqueçamos, os seres falantes se autorizam deles mesmos e não da escolha entre o todo e o não todo que o discurso impõe e que a ele só não implica nenhuma prática de corpo específica.”[9]

Voltando a Lautrec e Pimentel, eles como artistas nos ensinam que antes de estreitar o tema de suas obras, associando-as diretamente aos gêneros e questões sociais e culturais contemporâneos, temos aquilo que os próprios curadores nomeiam como suas poéticas. As demais questões entram nas leituras possíveis daqueles que as fazem, mas não são intrínsecas à poética que cada artista nos apresenta.

Lautrec nos oferece a investigação de seu olhar pela luz fria e esverdeada que emana de alguns rostos no interior dos salões; corpos que nossos olhos precisam construir junto a suas pinceladas, que não se oferecem facilmente. E ainda como o título nos evoca: Toulouse Lautrec em vermelho (in red). A cor, e me permito uma brincadeira com o som in red, a rede que com sua obra pode ser tecida com as exposições paralelas no mesmo museu.

O vermelho de Lautrec se entrelaça com Pimentel em outro vermelho. Pimentel usa as cores chapadas e seu vermelho é outro e é o mesmo. Outro pela materialidade e mesmo se pensarmos em sua relação à representação dos objetos. Se o vermelho de Lautrec constrói camadas e texturas de ambientes fechados, o vermelho de Pimentel marca camadas de um ambiente falsamente fechado. Observando atentamente encontramos em praticamente todos os quadros de Pimentel portas, escadas, espaços de escape que abrem para campos fora da representação do quadro. Se suas cores são chapadas, seus ambientes não o são. Abrem-se como sonhos dentro de sonhos.


Notas:

[1] Catálogo da Exposição Toulouse-Lautrec em vermelho – página sem numeração.

[2] Catálogo da Exposição Toulouse-Lautrec em vermelho – p. 58

[3] Catálogo da exposição Wanda Pimentel – Envolvimentos – p. 26.

[4] Ibid., p. 26 e 30.

[5] BOUSSEYROUX, M. Le pastout: as logique et as topologie  In: BOOOUSSEYROUX, M. Au risque de la topologie et de la poesie. Éditions Érès, Toulouse, 2011.

[6] Ibid.

[7] LACAN, J. (1973) O Seminário, livro 20: Encore. Escola Letra Freudiana. Tradução comparada e comentada em notas e anexos. Edição não comercial, p. 168.

[8] NGUYÊN, A. (2014-15)  Skilnyapas et Skilya In: NGUYÊN, A. Seminaire 2014-2015. Bordeaux: Depot Editeurs, 2015, p.30.

[9] SOLER, C. Une novelle Economie sexuelle  In: Revue Champ lacanien: Le choix du sexe n° 17, 2015. http://www.champlacanienfrance.net/node/594. Acesso em 03/10/2017.


Sobre a Autora:

Glaucia Nagem de Souza – Artista Visual e Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo. Responsável pelo Seminário Psicanálise e Arte. Monitora do ateliê de gravura do museu Lasar Segall de 2007 a 2015.

Participou da reorganização do ateliê de gravura das Oficinas Oswald de Andrade onde atualmente frequenta gravando e imprimindo suas gravuras. Autora de diversos artigos entre eles “O que Willian Kentridge me transmitiu” e “As sereias de Joyce nas letras de Saussure”.

E-mail: glaucia.nagem@uol.com.br